Das "mariconas" aos "novinhos", etarismo afeta saúde mental, relações e dignidade de LGBTs+ em Fortaleza
A história de resistência LGBTQIA+ de um casarão no Centro de Fortaleza evidencia os dramas do etarismo na comunidade. Mas, afinal, o que a Geração Z deve às "mariconas" e "cacuras"?
17:32 | Jun. 30, 2025
Existe um conflito geracional na comunidade gay? A pergunta que inicia essa reportagem é facilmente respondida na Avenida da Universidade, número 2226, no bairro Benfica, em Fortaleza. O casarão de três andares e paredes rosas abriga um dos espaços vanguardistas da noite LGBTQIAPN+ da Capital: a Toca do Javali.
O que iniciou como um bar de fim de noite, começou gradualmente a abrigar os “libertinos demais” que vinham expulsos de outras casas de shows no fim da década de 1990 e início dos anos 2000. Eram os “acadêmicos”, o “pessoal do teatro”, os “artistas”.
Um lugar de construção centenária, uma história de resistência e orgulho há décadas, um espaço que honra a memória e luta LGBT+ e um público que cresceu e acompanhou. Mas por onde anda a geração LGBT mais jovem de Fortaleza? Qual a distância do castelo rosa de um ex-oficial da marinha para a Geração Z?
Boa parte do público que frequenta a Toca do Javali é da faixa etária 40+. Parte da justificativa desse movimento pode ser explicada pela experiência de Luciano Almeida, 59. Ao visitar outras boates gays em Fortaleza, no bairro Varjota, por exemplo, já foi vítima de etarismo.
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Etarismo, culto ao corpo e preconceito na comunidade LGBT+ refletem disputas por espaços em Fortaleza
“A maior contribuição (da Toca do Javali) é justamente esse espaço de mistura de idades, onde se evitam as manifestações de etarismo que são tão comuns nas outras, infelizmente. Nas outras, onde só vai o pessoal mais novo, as pessoas queriam só exibir seus corpos de academia. Eu mesmo me senti vítima de preconceito de etarismo quando eu estava numa boate que tinha na Varjota e não rolava qualquer interação com as pessoas se tinha barba branca, que não fizesse parte daquilo”, relata Luciano.
Para Francis Wilker, de 47 anos, o lugar é um espaço representativo e gera orgulho, mas há desafios a serem enfrentados na própria comunidade.
“Vejo na Toca do Javali um espaço voltado ao público gay muito inclusivo. Estar lá me faz pensar nas identidades gays fora de rótulos e padrões, porque você encontra uma diversidade muito grande de pessoas. Num mundo fixado no corpo padrão, jovem, malhado, é interessante lembrar que a comunidade gay envelhece e naquele espaço todo mundo se encontra”, diz.
Quem elabora sobre o distanciamento da geração mais jovem desses espaços é a ativista LGBTQIA+ Labelle Rainbow: “Infelizmente, vejo que parte da geração atual, muitas vezes atravessada por um mercado LGBT higienizado e pasteurizado, ainda não reconhece o valor desses espaços. Preferem consumir a estética da luta sem se conectar com a raiz dela. É como se quisessem o brilho, mas não a história que o sustenta”.
Na visão do antropólogo Antonio George Paulino, acontecem processos de identificação diferentes em cada geração. O professor e pesquisador de gênero e diversidade na Universidade Federal do Ceará (UFC) defende haver uma grande diferença entre as prioridades e as visões de mundo das gerações LGBTs.
“Um espaço onde predomina um público mais maduro agrega pessoas que lá não serão adjetivadas pejorativamente e, acho que pela própria trajetória, conservam o hábito do gueto ou do lugar exclusivo, discreto, um lugar que não fica exposto. A geração atual não parece buscar essa descrição… É um olhar possível”, elabora.
“Mariconas” e “cacuras”: O etarismo que segrega, isola e violenta pessoas mais velhas na comunidade LGBTQIAPN+
“Maricona” e “cacura” são alguns dos termos recorrentes para se referir a um gay maduro na comunidade. O tratamento, que por vezes é dito em tom de brincadeira em um primeiro momento, abre margem para a reflexão sobre o conflito entre as gerações e da reprodução de preconceitos na própria comunidade: será que gays da geração atual lembram o que fizeram as “mariconas”?
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Labelle argumenta que romper com o fluxo de preconceito é fundamental para um futuro da comunidade LGBT. “Que as juventudes possam olhar para nós com respeito, mas também com curiosidade, gosto e vontade de aprender junto. E que nós, mais experientes, possamos acolher essas novas formas de existir com generosidade”, afirma.
Em meio ao embate de gerações, pelas paredes rosas do casarão no Centro de Fortaleza passam memórias vivas de luta, as quais, por vezes, viveram a reclusão em espaços como o Toca para sentirem o gostinho da liberdade.
“O que não se pode esquecer é que ali tem um espaço de resistência que sobrevive faz muitos anos como ponto de encontro da comunidade gay de ontem, hoje e amanhã”, complementa Francis, frequentador do local.
O casarão rosa que abriga a Toca do Javali e um “coronel” livre
O casarão datado de 1800 pertence a Victor Hugo Sampaio, de 88 anos, um policial federal aposentado e ex-oficial da Marinha que um dia sentara à mesa com os grandes. Figuras como Castelo Branco e Juscelino Kubitschek cumprimentaram a mão do homem que abriria as portas da própria casa para celebrar o que a sociedade daquela época mais temia: a liberdade.
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Agora imagine: medalhas de honra, platinas de ombro militar, fotografias de reuniões diplomáticas, tudo isso misturado à pomposidade rosa-choque e à purpurina da comunidade LGBTQIA+. Esta é a “Toca do Javalí”, espaço que todas as sexta-feiras se abre para um público que há muito tempo tem orgulho do que é.
“São pessoas que levam a vida como querem porque têm direito de viver, curtir o que acham que está certo. Na verdade, são pessoas ilustres, bem desenvolvidas, cultas e relativamente bonitas”, diz Victor.
A observação feita pelo “Seu Coronel”, assim como é conhecido Victor Hugo, vem de um local marcado todas às noites de sexta: o “trono”. É de uma cadeira à direita da entrada que ele vê quem entra e sai da Toca. Por ali também acontece a “curadoria” de pessoas no local.
“É para poder ver a freguesia que está entrando. E ver quem está querendo se exibir demais. Não pode ficar nu da cintura para cima, daqui a pouco vai querer ficar sem calça. Outros bebem demais e já peço para irem pra casa”, diz o Victor em tom de brincadeira. “E, justiça seja feita, todos me obedecem”, completa.
Quem passou pelo crivo do Coronel foi Luciano. Do tempo da “Patuscada”, o jornalista tem um compromisso semanal com a Toca do Javali há quase 25 anos.
“Um espaço de fruição, de conhecer novos amigos. Conheço gente que, quando começou no Toca, tinha 18 anos, hoje está com 30 e tantos e foi ficando. E gente mais velha que também foi envelhecendo”, narra a testemunha do sucesso e das lutas de resistências os quais marcam quem frequenta o local.
O que os anos reservam para a Toca do Javali?
Para Toca - que jamais foi escondida e permanece como espaço seguro há mais de 20 anos, mesmo com os desafios do tempo, das luzes neons mais modernas e das casas mais badaladas -, qual será o futuro? No olhar de Seu Coronel, no auge dos 88 anos, não há previsão de fim.
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Ele, que se define com orgulho como “um homem livre”, comenta não pretender repassar a responsabilidade de cuidar do espaço para ninguém.
Assim, entre as memórias de luta e celebrações de direitos, a Toca segue viva, resistindo ao tempo como um marco e abrigo daqueles que vieram antes. Para quem abriu espaços, conquistou direitos para todos e hoje luta pelo direito de viverem o presente e sonharem com um futuro mais acolhedor na própria comunidade.
E se para homens livres a Toca é lugar de refúgio e liberdade, o que significa a Toca para um Coronel?