Ouvir com o corpo: quadrilheira surda transforma o São João com sua arte e vivência
Surda desde os 12 anos, Mara Alexandre transforma a vibração em coreografia e desafia os limites da escuta
09:41 | Jun. 28, 2025
Em um universo onde o ritmo e a melodia parecem essenciais, a quadrilheira Mara Alexandre, redefine o que significa “ouvir” a dança. Surda desde os 12 anos, nunca permitiu que sua condição a afastasse do mundo das quadrilhas juninas — uma tradição enraizada em sua família.
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Mara tem 39 anos e é moradora do bairro Presidente Kennedy, em Fortaleza. Oralizada, aprendeu a fazer leitura labial no começo da adolescência. Hoje, é formada em dança pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e desenvolveu estratégias de “escuta” que vão além da audição tradicional.
Sua trajetória começa aos quatro anos, por influência da mãe, Joana Alexandre, apaixonada pelas festas juninas. Aos sete, Mara já se destacava como rainha em apresentações de bairro.
Veja as fotos:
Ainda na infância, Mara enfrentou um momento desafiador: Aos 12 anos começou a perder a audição após uma injeção para o tratamento de meningite. Ela relata que, após tomar a injeção, desmaiou e voltou a si, vomitando e com mal-estar.
O diagnóstico veio após a família perceber que ela já não reagia a sons e falas. Um exame de audiometria indicou perda auditiva bilateral profunda. A partir daí, passou a ser acompanhada pelo Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami) da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Segundo especialistas da época, a perda pode ter sido causada por uma reação do vírus ou por uma má aplicação da injeção.
Ela explica que a perda não foi progressiva, mas repentina. “Eu estava ao lado do telefone tocando e não ouvia. Minha mãe achava que eu não queria atender, mas era porque eu não escutava mais.”
Mara nunca deixou de dançar. A arte, segundo ela, foi o que a salvou. “Foi muito complexo, muito desafiante. O preconceito era enorme. Eu era a única surda na escola, perdi muita coisa. Mas a dança me ajudou a descobrir a potência que é o meu corpo.”
Ela aprendeu a identificar as batidas por meio da vibração e da observação de outros corpos. “Os sons graves são os que eu consigo perceber. O som da zabumba, por exemplo, permaneceu na minha memória. Já os sons agudos, como o do triângulo, eu só consigo identificar porque estudei.”
Hoje, Mara é destaque da Quadrilha Junina Babaçu, onde atua como rainha há muitos anos. “Sou rainha e destaque principal da quadrilha. Carrego no meu corpo as transformações das quadrilhas juninas do Ceará, desde os anos 90”, afirma orgulhosa
Além dela, a quadrilha conta com outro integrante surdo, Ítalo Oliveira, que se comunica por Libras. “Ele é sinalizado, eu sou oralizada, mas temos uma comunicação. É muito importante que mais pessoas com deficiência ocupem esse espaço.”
Mara é criadora do espetáculo “A Rainha”, um manifesto político-cultural estreado neste ano no Sim São Luís, com apoio da Fundação Nacional de Artes (Funarte). A obra conta sua trajetória como mulher, artista e pessoa surda dentro do São João.
“‘A Rainha’ é minha história em cena. Eu toco zabumba, danço e conto como a dança me salvou. É um espetáculo feito para que outras pessoas surdas se vejam também no palco.”
Além disso, ela desenvolveu o método Mara Alexandre, voltado para o estudo do corpo e do movimento na dança junina. O método busca desenvolver as possibilidades individuais do corpo de cada aluno.
“Eu não levo coreografias prontas para as pessoas, mas sim mostro o caminho certo para dançar quadrilha. Ensino como pegar na saia, como perceber a musicalidade, como entender o ritmo. Não é copiar passos, é dançar de verdade”, explica Mara.
Ela ministra oficinas em todo o Brasil e já ensinou tanto pessoas surdas quanto ouvintes. “Muitas rainhas hoje usam movimentos que eu criei. A cada ano trago algo novo. Eu quero mostrar que cada corpo tem seu jeito de dançar e todos são válidos”, afirma
Para outras pessoas com deficiência que sonham em dançar, Mara deixa um recado direto:
“Nada sobre nós, sem nós. Nós somos capazes, sim, e temos o direito de ocupar todos os espaços. Não desistam de vocês, como eu não desisti de mim.”