Fim de relacionamento: guarda compartilhada serve para pets?
Quando casais se separam ou se divorciam, o animal de estimação que criaram juntos acaba perdendo um dos donos, sentindo a falta dele. O impacto da ausência pode ser atenuado caso tutores entrem em consenso
21:55 | Jun. 23, 2021
Valentim passou um tempo mais quieto quando as suas donas se separaram. O gato sentiu saudades de uma das tutoras, que com o rompimento do namoro deixou de ir à casa onde o bichano mora. Esse comportamento de "Tim Tim", como é chamado carinhosamente, revela que animais de estimação também são atingidos quando o núcleo familiar se rompe. Nesse tipo de situação, a guarda compartilhada do animal pode ser o melhor caminho.
O gato amarelo e sem raça definida chegou à vida de Marjorie Judie, 29, em 2016, quando a analista de produção trabalhava em uma obra e encontrou a ninhada onde Tim Tim havia acabado de nascer. A ideia era doar o bichano, mas em um contratempo da vida ele acabou na casa da jovem e nunca mais saiu de lá.
Na época, ela já namorava com a publicitária Thuane Araújo, que rapidamente se apaixonou pelo gato. Foi dela, inclusive, a ideia do nome Valentim. Apesar de o casal não morar junto, a responsabilidade sobre uma vida transformou o relacionamento aos poucos em um núcleo familiar.
No fim de 2019, no entanto, as duas decidiram romper a relação. Com isso, Thuane ficou sem ter noticias de Tim Tim, e o animal ficou sem vê-la. Ambos sofreram com a distância, não à toa a publicitária encaminhou meses depois para a ex-namorada uma mensagem perguntando se o bichano estava bem. Daquele dia em diante, as duas não pararam mais de manter contato, ligadas por meio do amor ao gato.
"Sempre quando ela queria vê-lo, a gente se ligava, eu mandava fotos, fazia chamadas de vídeo, pra ela estar de novo com o gato, porque pra ela foi uma saudade enorme não ter ele durante o término", conta a analista, relembrando o esforço que fazia para que o bichano não perdesse o contato com a outra tutora.
Por meses a relação das jovens foi direcionada ao vínculo afetivo que sentiam por Tim Tim, ao amor por aquele ser vivo que integrava e fortalecia ao mesmo tempo o relacionamento entre elas. Em julho de 2020, no entanto, elas marcaram um jantar e decidiram reatar o namoro, ou melhor, a família que tinham juntas.
Tutora relembra saudade
Thuane ainda lembra o exato momento em que encontrou Tim Tim pela primeira vez. Ela estava na casa de Marjorie quando a namorada chegou, com o animal ainda pequeninho nos braços. Pega de surpresa, a publicitária no mesmo dia se afeiçoou ao bichano, sentindo automaticamente um amor por ele.
"Ele sempre ficou na casa da Marjorie, desde bebezinho. Acordava com ele mastigando meu cabelo. Sou muito carinhosa, falam até que eu amofinei o gato porque eu estava sempre com ele, fazendo os gostos", relembra, aos risos, a publicitária, destacando o forte vínculo que tem desde sempre com o animal.
Quando decidiram terminar a relação, a jovem lembra que um dos pontos levantados foi como ficaria a ligação entre ela e Valentim. No entanto, levando em consideração os sentimentos do casal com o rompimento, em um primeiro momento a decisão tomada pelas duas foi a de se distanciarem.
"Isso doeu muito, muito mesmo, porque foi uma coisa que acabou incomodando, atingindo a relação com ele. Sentia muita falta. Uma ruptura que você não está preparada. Foi muito difícil. Não gostava de ver animal nem quando saia. Ficava vendo as fotos dele, lembrava do cheiro", relembra a publicitária.
Naquele período, a jovem ainda ouviu de algumas pessoas críticas. "Falavam: 'Ah, adota um pra ti, adota outro', como se fosse uma coisa substituível, e não é. Você saber o vinculo que criou ali, o amor, a dedicação, coisas únicas que é impossível substituir", conta.
Guarda compartilhada de pets é um direito?
No período após o término da relação, ambas as tutoras poderia ter optado pela guarda compartilhada do animal. Contudo, Thuane conta que Valentim tem um comportamento assustado e nervoso, não sendo viável ficar deslocando o animal de casa da forma como costuma acontecer com cachorros.
Caso não houvessem reatado e tivessem optado pela guarda compartilhada de Valentim, Marjorie e Thuane primeiro precisariam entrar em consenso. Isso porque no Brasil ainda não há legislação específica para regulamentar casos como esse. O que existe é um Projeto de Lei (PL) que estabelece o compartilhamento da custódia do animal quando não houver acordo no divórcio ou na separação.
A matéria, no entanto, ainda está em trâmite no Senado. Com a falta de amparo legislativo, existe dois entendimentos sobre a causa. O primeiro enxerga o animal de estimação como se fosse um dos "bens" a ser repartido em uma separação, rebaixando ele a "coisa". O segundo é o de que deve ser dado um tratamento diferente ao pet, porque ele é um ser vivo e, pela Constituição, não deve ser maltratado.
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Todos esses entendimentos podem ser utilizados nos tribunais quando um casal não chega a um consenso sobre a guarda do animal e leva o caso à justiça. Supervisor das Defensorias de Família de Fortaleza, o defensor público Sérgio Luís de Holanda explica que o juiz pode aplicar o modelo de compartilhamento da guarda, também utilizado no caso de separação na qual o casal tem filhos crianças ou adolescentes.
Nesse sentido, os ex-parceiros podem ter a guarda dividida ou compartilhada do animal, tomando em conjunto decisões importantes sobre a vida dele. Assim, ambos arcariam com despesas como veterinário e alimentação e decidiriam sobre os dias nos quais cada um vai ficar ou visitar o bichano.
Caso o juiz faça uso do fundamento da divisão "de um objeto que não pode ser dividido", o animal é visto como uma "coisa", e cada uma das partes passará a ter diretos iguais sobre ele. "É uma situação muito delicada, porque na hora de dividir como você vai colocar um preço no animal? Tem um laço afetivo que não dá pra colocar em dinheiro", pontua o defensor público.
Sérgio destaca ainda a necessidade de ter um avanço quanto a essas questões, principalmente devido ao aumento de famílias integradas por animais. "É uma realidade. Tem unidades familiares que não querem filhos e têm animais domésticos. Basta você ver o crescimento de comércios voltados para animais. Juridicamente, a nossa preocupação é quando isso pode causar um conflito", explica o defensor.
Compartilhamento na prática
Ao contrário das tutoras de Valentim, que reataram o relacionamento e retomaram a rotina com o gato, há ex-casais que precisaram aplicar o modelo de guarda compartilhada. Esse é o caso do diretor de arte Bruno Hedy, 34, que começou a vivenciar essa experiência no final de 2020.
Isso porque, em fevereiro daquele ano, o jovem e a namorada que morava com ele compraram Bento, um cachorro da raça Pug. Quase sete meses depois, o casal se separou e tomou de imediato a decisão: o animal passaria os fins de semana com Bruno e a semana com a ex dele.
"No inicio, foi um pouco complicado porque teve toda fase do término do namoro, mas a gente sempre concordou que quando se tratava do Bento a gente não podia deixar de lado em momento algum, seja por qual for a circunstância. Eu não me vejo longe do Bento", relembra o jovem, que também atua como Dj.
O compartilhamento da guarda tem funcionado. Todo mês, o jovem separa uma parte do salário para ração do cachorro. Do outro lado, a ex-namorada sempre contribui também com despesas como vacinas. Quando um deles precisa viajar no período de estadia com Bento, ambos conversam e ajustam o tempo combinado.
Eles agora namoram outras pessoas, mas mantém uma relação saudável pelo animal e sempre estão se falando por telefone. Quando o cachorro fica sem comer, por exemplo, Bruno liga para a ex e comenta preocupado sobre o comportamento dele. "Já estamos em outros relacionamentos, porém a gente sempre se fala sobre o Bento, é como se fosse um filho", relata o jovem.
Separação afeta os animais
Quando Bruno e a ex-namorada precisam trocar os dias combinados de guarda, ou mesmo durante a rotina comum, o cachorro sente saudades do tutor que ficou distante. Nos últimos dias, por exemplo, o Dj precisou ficar a semana inteira com Bento, e o bichano sentiu a falta da tutora. "Ele começou a dar sinais de saudades. Parou de comer a ração. Ficou esperando eu chegar do trabalho pra comer. Às vezes, vou passear com ele à noite, e ele fica olhando pra trás como se ela (a ex-namorada de Bruno) fosse aparecer, porque é o horário que ela costuma passear com ele", conta o jovem.
Já o gato Valentim, nas primeiras semanas de término das donas, ficou mais quieto do que de costume, aparentando sentir a falta de Thuane. Quando ela começou a vê-lo novamente, houve um estranhamento da parte do gato, mas com o tempo ele voltou a se adaptar à presença dela.
Daniele Vasconcelos, Coordenadora do Comitê Gestor do Projeto de Convivência com Cães e Gatos em Estado de Abandono, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explica que todo animal tem uma personalidade própria. Contudo, o comportamento do bichano é influenciado pelo núcleo familiar, por esse motivo eles têm reações após o rompimento de casais ou alterações da família.
A especialista afirma que as reações apresentadas por Valentim e Bento são comuns em animais que se afastam do dono, devido ao vinculo que criam com seus tutores. "As reações mais comuns são tristeza e desânimo profundo. O animal rejeita água, rejeita comida, não interage mais", destaca a professora.
Em caso de abandono, o caso se agrava. Isso porque os tutores não retornam ao convívio do animal ou nem mesmo fazem visitas, e, com isso, a tristeza do bichano é prolongada. Ficando muito tempo sem beber água ou se alimentar, os animais acabam se desidratando e podem chegar a morrer em decorrência disso.
Mas quando há interesse, amor e responsabilidade por parte dos donos, existe um jeito de atenuar a saudade: usando a tecnologia. Assim como Thuane fez chamadas de vídeo para ver Valentim, Bruno usa do mesmo artificio quando Bento está na casa da ex-namorada. A técnica funciona, segundo Daniele.
"Eles entendem essa interação. Quando escutam a voz, respondem imediatamente ao som daqueles que reconhecem como pai e mãe. Se alegram, se animam com o contato, respondem balançando a calda ou latindo. Outros chegam a urinar de tão forte que é a emoção", explica a docente.