PUBLICIDADE

Dohong, Zakaly e Cid Moreira

00:00 | 06/07/2019

Quando um ou mais estiverem reunidos para falar sobre contos, a lamúria estará entre eles. Vão reclamar que as editoras não prestigiam, que preferem romances, que não valorizam os talentosos contistas que brotam todos os dias das xícaras de café deste Brasil afora. Mais calmos, vão conseguir voltar ao tema preferido: a discussão sobre o que é um bom conto. Termina quase sempre em um novo decálogo. Já existem trocentos, mas sempre há uma nova verdade a ensinar sobre o que é, enfim, um conto primoroso.

Um dos mestres do ofício, Júlio Cortázar, usou imagens fortes para explicar que o conto precisa ganhar o leitor no nocaute, que é como uma fotografia, um recorte direto. Quem já perdeu a inocência sabe que não há fórmula nem decálogo que salve um conto, este campo onde é tão difícil ser excelente. A presumida facilidade da narrativa curta é uma armadilha perigosa onde muitos escorregam.

Para entender a excelência talvez seja mais produtivo falar de um livro de contos muito, muito bom: Alguns Humanos, do Gustavo Pacheco. Um objeto vermelho, caprichado, com a qualidade inconfundível da editora portuguesa Tinta da China. Onze contos aparentemente despreocupados. Não é prosa de um narrador ansioso, afobado. É texto de quem quer contar uma boa história, de quem sabe que a vida é muito maior do que o universo daquelas páginas, que há muito antes e depois do texto existir.

O que me conquistou neste trabalho foi a sensação de estar diante de um narrador tranquilo, maduro e que sabe muito bem o que está fazendo. Vamos sentar aqui e falar do que somos nós todos, ele diz. Há um lado animalesco em todos nós, há a sombra, o que escondemos e não queremos ver. Está aí. E pouco a pouco, conto a conto, vemos uma das faces do nosso próprio bicho escondido.

O narrador usa o recurso de linguagem mais sofisticado: a simplicidade. Mas as camadas profundas, uma qualidade que não é possível falsear. Há muita coisa dita nos não ditos do texto. Há muito o que se pensar e conversar sobre o assunto. O bom conto não termina nele mesmo, esse é, para mim, um dos sinais de qualidade da narrativa breve. Até hoje estamos falando do Outro, do Borges, da Casa Tomada, do Cortázar, de qualquer um do Cosmicômicas, do Italo Calvino e tantos, tantos outros.

O fio inteligente que une os contos faz pensar nas questões que negamos. Há o homem comum e sua relação com Deus; há o Cid Moreira; a mulher mais feia do mundo; um escravo; um índio; um taxidermista; os primatas; o comportamento dos animais diante dos seus pares, ; o espelho borrado do que, repito, não queremos ver sobre nossa frágil condição animalesca.

O livro pode ser convertido e uma coleção de perguntas: o que Deus diria se pudesse falar conosco? O que é a beleza? O que ganhamos, de fato, por sermos diferentes dos primatas? O que define, de verdade, nossa evolução? Por que escrever? Do que a ignorância nos protege? Alguns humanos pensam que sabem as respostas todas. Sabemos nada. Estamos às cegas e o melhor é rir um pouco quase sempre. Esqueci de falar: além de tudo, Gustavo Pacheco maneja muito bem o humor. Coisa rara. Livro raro. Gostaria de ler de novo, mas dessa vez em áudio book e com a voz do Cid Moreira.

Socorro Acioli