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Motivos para narrar

00:00 | 11/05/2019

A força de qualquer narrativa está muito mais na forma de contar do que no tema em si. O mesmo assunto pode render um parágrafo alucinante ou dez páginas morosas e arrastadas. Na história da Literatura as grandes obras são, em geral, as que conseguiram romper com os padrões anteriores e apresentaram novos usos das palavras e dos seus modos de organização.

Minha amiga Izabel Gurgel costuma dizer que os exímios artistas são os que inventam novas ferramentas para o seu ofício. Escrever parece muito com bordar: o segredo da maestria está no avesso, no que não se vê. No cuidado com os sinônimos, por exemplo, na medida do tamanho das frases e seu equilíbrio. Na escolha dos tempos verbais e as proibições pessoais de acordo com cada estilo e propósito. Quando se lê um grande texto nada disso aparece, está do outro lado. Fica a sensação de magnitude, genialidade, estupefação diante da obra, sem qualquer ideia do quanto custou alcançar.

Para quem tem interesse no tema da narração, o primeiro avanço é perceber que autor (o ser humano que escreve) e narrador (a voz que conta) são figuras distintas, detentores de poderes e controles diferentes no processo. É sobre o narrador que devemos pensar ao ler, escrever e sobretudo ensaiar qualquer apreciação ou julgamento de um texto.

Todo leitor voraz gosta de descobrir novidades, não se acomoda nas velhas formas de escrita e sobretudo não cai facilmente na falácia da Literatura como esvaziado desabafo. Usar as palavras para falar da própria vida, das mágoas, traumas, angústias, pode, sim, dar certo. Vejam Marcel Proust! Foi isso que ele fez. Sendo Proust, ou estando perto disso, certamente o desabafo pode virar obra literária.

Não sendo, o mais prudente é observar com respeito um ofício mais antigo que nós todos, contemplar seu percurso, seu entrelaçamento com a história das mentalidades, processos sociais, científicos, como o mundo estava acomodado ao seu redor, em seu tempo. É o mínimo que alguém deve fazer quando pretende iniciar o trabalho de escrever.

Na altura em que estamos, os caminhos são infinitos nos modos de narrar. Minha amiga Regina Ribeiro, uma grande leitora que não teme nenhuma aventura quando abre um livro, ofereceu uma disciplina inesquecível para os alunos da Especialização em Escrita Literária da FB UNI. Ela mesma escolheu o título: a Arte de Narrar. E não poupou os neurônios de ninguém.

Foi nessa ocasião que conheci o livro Múltipla Escolha, do Alejandro Zambra, um ótimo exemplo para dizer até onde a boa literatura pode ir. O livro é uma prova. Um teste, como o ENEM, como o nosso antigo vestibular, como a que se faz em qualquer concurso. Zambra usou o modelo da Prova de Aptidão Verbal do governo Chileno e na estrutura de questões múltipla escolha, lacunas para completar e intepretação de textos, ele falou de amor, política e liberdade. Regina me emprestou e eu nunca devolvi. Não é falta de caráter da minha parte, tanto que faço essa confissão pública, é porque não consigo me afastar dele. Leio e releio sempre, indico para os amigos. Ele me ensina o que é o propósito de escrever, até onde é possível ir e na ideia de atingir lugares onde ninguém chegou ainda com as palavras. Trata-se de compreender as possibilidade dos efeitos. Quem imaginaria que um livro escrito em formato de prova poderia comover tanto, provocar tantas reviravoltas nos sentimentos do leitor?

Narrar é uma necessidade humana. Narrar bem é uma evolução da capacidade de criar. E uma boa narração exige um grande motivo. Escrever por que? Depois de descobrir, se a resposta for lúcida, as coisas podem começar a dar certo.

Socorro Acioli