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Aponte onde está o Norte

00:00 | 04/05/2019

Sempre fiz do valioso retângulo que me cabe neste jornal uma janela por onde corre ar fresco. Quanto mais desesperadoras as notícias das outras páginas, mais necessários os sopros de alívio. Apesar do desmantelo trágico que nos cerca, da desgraça coletiva tomando corpo dia após dia, há uma força indestrutível em contraponto para salvar as almas que escolheram sobreviver. É dessa força que extraio a matéria prima do meu trabalho.

Não falar de política é, portanto, uma decisão política. É um recado.

Estou dizendo, com o meu silêncio, que desgoverno algum merece a desistência de olhar todos os dias para a importância da Literatura e trabalhar por ela. Estou dizendo, também, que nada vale o custo alto de desistir de viver uma vida edificada pela esperança, pois somos alma. Eles nunca terão o poder de destruir o patrimônio edificado pelas palavras. Desistir disso é adoecer.

Diante da necessidade de resistir, cada um escolhe sua posição na trincheira e luta com as armas que maneja melhor. A minha está clara, coerente com todo meu propósito de vida. Meu lugar na trincheira é relembrar o poder ancestral da palavra, multiplicar nos mais de quinhentos alunos que tive até agora a certeza de que escrever é uma maneira poderosa de construir um mundo novo e melhor.

Meu lugar na trincheira é repetir que somos, antes de tudo, almas. Pedaços de uma Alma Brasileira que passa agora por um profundo e doloroso processo de cura. Peter Pál Pelbart, filósofo húngaro radicado no Brasil, disse com palavras justas o que pode explicar uma face do processo que vivemos.

Seu pensamento nomeia a dor que sentimos ao ver que caíram as máscaras de muitas pessoas ao nosso redor. A verdade emergiu, mas sempre esteve aí. Somos um País construído sobre bases violentas, mas que acreditou no mito do Brasileiro Cordial até agora. Fechamos muitas feridas históricas sem limpeza e cura e agora elas inflamaram, nos levando a olhar para as nossas bases e tomar a decisão: essa violência acaba em mim. Não vou passar isso adiante. Coube à nossa geração o dever de abrir os olhos e tratar as feridas da escravidão, da ditadura, do machismo, racismo, homofobia e outras desgraças que compõem a nossa sombra. Está nas nossas mãos e não podemos esmorecer.

A fortaleza de todos os dias devemos aprender com gente sábia como o João Landim, de onze anos, que antes de dormir escolhe uma música alegre para despertar feliz na manhã seguinte. Também sugiro ler um conto ou uma poesia com café - em voz alta, para despertar as musas.

É boa ideia escrever cartas para crianças e jovens, retomar diários para redescobrir propósitos e missões, apontar para onde está o Norte, como canta nossa Maria Bethânia em uma de suas músicas mais bonitas. Estar perto de pessoas positivas, buscar força nos fortes, fazer escolhas, tomar decisões, largar os velhos hábitos de degradação. A palavra é um dos grandes poderes transformadores da História.

Munidos das palavras certas, vamos permanecer cada um no nosso posto de trincheira, sem violência, cuidando da parte que nos cabe no processo de cura individual e coletiva que nossa geração precisa cumprir. De minha parte garanto: nasci para abrir janelas diante da beleza e continuarei assim. É missão e promessa.

Socorro Acioli