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O Deus das coincidências

00:00 | 27/04/2019

Escrevo esta crônica dentro de um avião, sem computador e sem conseguir dizer exatamente em que lugar do mundo estou agora. Não há intermediários. Cada palavra faz a caminhada do cérebro à mão, percorrendo o braço, vivendo no meu corpo antes de viver no texto. Cada uma vem com sua memória ancestral. Foi escrita e pronunciada inúmeras vezes antes de ser usada por mim agora, em outros lugares e sotaques habitados pela Língua Portuguesa.

Será que o fato de escrever voando concede algum poder diferente ao texto? Um tipo qualquer de efeito invisível? Mais leveza? Ou o contrário, mais necessidade de peso? Será que o pensamento muda quando estamos assim, tão longe do chão? Até agora tudo parece bem normal, mas talvez o experimento científico metafísico-literário que proponho aqui exija mais rigor. Mais voos, mais tempo de escrita em aviões, instrumentos de controle e comparação. Por enquanto considero apenas uma experiência isolada do ofício.

Eu estava lendo antes de começar a escrever. Faço sempre isso, como aquecimento. A escolha do livro para ler no voo é uma das providências mais importantes antes de uma viagem. Há o tempo suspenso, as horas contadas. Com sorte, há silêncio, quietude e a condição perfeita para a entrega às palavras. Não consigo voar sem ler.

Escolhi como companhia O Retorno, da Dulce Maria Cardoso. Ele pediu para ir comigo, praticamente escutei sua voz. É especial, pois tem a dedicatória linda da Dulce, com desenhos de flores, lembrando do dia em que saímos para comprar bordados.

Logo no início ela fala das primeiras horas de 1975, ano em que nasci. A música da festa de ano novo é A Banda. Tive de fechar o livro por uns segundos. Não imaginava que ela falaria dessa canção, tão importante para mim, cercada de lembranças, guardiã de um segredo, semente. Inesperada coincidência.

O tema do Retorno é a história de uma família de portugueses que vivia em Angola e volta para Portugal em 1975, sob forte tensão e risco de morte no fluxo de abrupta descolonização em África. Li outro com a mesma temática recentemente, o Caderno de Memórias Coloniais da Isabela Figueredo - que estava sendo lido por outra mulher dentro do avião. Outra coincidência. O tempo e o espaço é o mesmo nos dois trabalhos. São distintas as escolhas do narrador, do foco, do tom, do que o coração enxerga na dolorosa experiência de ser uma Retornada.

Saí do livro, do avião e entrei no táxi que o destino mandou. O motorista era português da região do Douro, mas também viveu em Angola. Também retornou em 1975. Um grande leitor. Ele estava nos lugares e nas situações que o livro contava, como seu eu continuasse a ler pela voz de um Retornado erudito.

A crônica começou no ar, terminou em terra com um final arranjado pelo destino. Foi atravessada por uma leitura e pelo encontro com um homem que viu de perto o que eu acabara de ler. As frases finais eu escrevo no computador, já com os pés no chão da minha casa, ainda mais impressionada com o poder da Literatura, sonhando com o próximo voo, com o próximo livro e rezando para que o Deus das coincidências continue bem perto de mim.

Socorro Acioli