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Ex-neonazista revela: "Eu poderia ser um radical salafista"

15:05 | 22/09/2015
Karl vivenciou a cena de extrema-direita alemã. Depois de abandoná-la, teve que fugir da morte. Ele considera seus motivos para se interessar pelo radicalismo os mesmos que fazem jovens se alistarem na jihad islâmica. "Agora é a tua vez": Karl recebeu a ameaça por SMS depois de ter se desligado do grupo paramilitar em torno do qual sua vida girava, até então. "Vocês me deixem em paz com essa merda nazista, agora eu tenho uma família", foi sua resposta. Só quando sua esposa ficou grávida é que ele começou a raciocinar, conta. Até então, "vivia em outro universo". Karl era um da liderança do grupo "Cosmo da Extrema Direita". Seu dia a dia era cheio: de manhã, cursos de política, à tarde, práticas de combate que por vezes incluíam exercícios com armas brancas ou explosivos. O grupo se mantinha com atividades comerciais na cena de extrema-direita, como bares, estampa de roupas, distribuição de CDs e tráfico de armas. A violência era uma constante na vida de Karl contra policiais, minorias, dissidentes políticos. Ao receber a ameaça, ele percebeu ter subestimado a reação de seus camaradas. E no entanto o jovem alemão tinha motivos para saber como a cena lidava com quem se afastava dela: "Eu mesmo já havia perseguido gente assim." Facadas e tiros Karl não é seu nome verdadeiro, e ele tampouco quer mostrar o rosto. O encontro com a reportagem da DW é num restaurante longe tanto do lugar onde ele mora como de sua cidade natal. Depois de se sentar perto da entrada, muda de cadeira, por não se sentir seguro de costas para a porta. Seis anos atrás, tentou sumir, mudando-se. Mas seus antigos colegas o tocaiaram quando fazia compras e o esfaquearam. Ele teve que ficar duas semanas internado no hospital. "Só aí ficou claro para mim que não ia ser tão fácil pular fora." Karl mudou-se mais uma vez. Pouco tempo depois, os ex-camaradas o localizaram novamente. Dessa vez apareceram na porta da sua casa. "Eles tentaram atirar em mim", lembra. Uma das armas estava apontada para sua cabeça. "Só tive sorte porque o atirador estava de costas para a escada e pude empurrá-lo pelos degraus abaixo. Desse jeito, o buraco foi na porta, e não na minha cabeça", recapitula, engolindo em seco. Importância da compaixão Karl poderia ter contra-atacado. "Eu também estava bem armado." Porém ele decidira não fazer mais uso de violência. Para proteger sua família, foi à polícia, até então sua inimiga declarada. Acabou encontrando um policial prestes a se aposentar, o qual, "pelo motivo que seja, foi compreensivo". No entanto um programa estatal para os que abandonam grupos de extrema direita se recusou a admiti-lo, "por não acreditar que eu quisesse realmente sair da cena". Foi aí que ele entrou em contato com o Nina NRW, um programa não estatal no estado da Renânia do Norte-Vestfália. Em menos de 24 horas, Karl se mudou para um local a centenas de quilômetros de distância de sua cidade. "Eu levava apenas uma mochila, minha mulher e meu filho, e cheguei num lugar qualquer como se fosse ninguém, nada", recorda. Mas auxiliou bastante o fato de os funcionários do projeto o verem "como ser humano, e não como neonazista". Com a ajuda deles, Karl pôde se dar conta do tinha feito com outras pessoas e o como chegara àquele ponto. Mas as imagens dos que havia agredido, os pesadelos, vergonha e sentimentos de culpa o perseguem até hoje. Retribuindo a violência do passado Karl passou muito tempo pensando por que se tornara tão violento. "A primeira vez que vi alguém levar um golpe no rosto com um objeto, com o sangue saindo por todos os buracos foi horrível!" Porém, quanto mais presenciava tais cenas, mais fácil ficava. "Em algum momento, eu mesmo passeia a bater, e fui aclamado. O cara não se levantou mais, e os outros acharam bom." Para Karl, em situações como essa funciona um princípio simples. "Seres humanos precisam de reconhecimento. Eu recebi elogios que não acabavam mais, fui celebrado. Para mim, ficou claro que é melhor o outro estar por baixo e eu por cima. Eu não queria nunca mais ficar por baixo." O que Karl vivera em criança, ele devolveu "a outras pessoas que não tinham culpa nenhuma", analisa. Com apenas dez anos, fora para o orfanato, onde teve que enfrentar lutas pelo poder. Ele aprendeu a praticar violência, tornou-se um ser isolado. Na escola, tinha boas notas e se saiu bem no curso técnico. Mas, depois de ser rejeitado pela firma onde concluíra o aprendizado, perdeu o chão, tornando-se morador de rua. Cartilha do nazismo Um conhecido o abrigou e lhe deu comida e dinheiro. O fato de seu benfeitor frequentar a direita radical não tinha a menor importância para Karl: "Havia alguém que se importava comigo." Assim também foi com o grupo de extrema-direita para o qual o amigo o levou. "Lá, ninguém me perguntou por que eu tinha aquele corte de cabelo e por que não usava calças da Nike. Eles me aceitaram como eu era e me ofereceram amizade e camaradagem." A ideologia radical o ajudou a encontrar culpados para seus próprios problemas. O melhor exemplo foi o emprego perdido: "Fui demitido, mas os estrangeiros que trabalhavam na empresa continuaram por lá", rezava a justificativa. A partir daquele momento, a cartilha do nazismo era o que valia para ele: do racismo, a negação do Holocausto e o antissemitismo, até "o ódio total". O objetivo do grupo era bem definido: "Seguir o exemplo do NSDAP, o Partido Nazista." Hoje, tal ideia é quase inconcebível para ele: "Um golpe de Estado com violência... destruir tudo o que é democracia." Brincando com ideias terroristas Karl não ficou surpreso quando, em 2011, veio a público o terrorismo da Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU, na sigla em alemão), grupo que perpetrou dez assassinatos e um atentado na movimentada rua Keupstrasse, em Colônia. Na cena de extrema direita, ele conhecera "muita gente que brincava com a ideia de matar montes de pessoas, praticar atentados terroristas". Ele mesmo chegou a pensar coisas assim. Empatia pelas possíveis vítimas, Karl não sentia. "Eu não via aquelas pessoas que sofreram nas minhas mãos como seres humanos." Depois de uma longa pausa, o extremista convertido continua: "Para mim, elas eram escória, baratas, porcaria." O ex-neonazista alerta que a militância de extrema direita não deve ser subestimada. Ele aponta as fortes conexões internacionais existentes: "Rússia, Polônia, Bulgária, Holanda, França, Suécia, Dinamarca não há fronteiras." Por toda parte os neonazistas alemães "são recebidos de braços abertos e muito elogiados", recorda. "A sensação era simplesmente incrível." Segundo Karl, a aparente confraternização com os odiados estrangeiros não passa de hipocrisia. Nas ruas do país, grita-se "A Alemanha para os alemães". Quando se está na Rússia, o lema é diferente: "Irmãos de luta do front Leste" ou "Lutamos pela Europa das pátrias-mães". No caminho de volta, fala-se mal dos "companheiros" estrangeiros, revela o alemão. Uma guerra santa ou outra Os neonazistas foram os primeiros que Karl encontrou, por isso ele se tornou radical de extrema direita, observa hoje, com distanciamento. Porém também consegue compreender por que jovens se deixam recrutar pelo jihadismo salafista. "Na verdade, era exatamente o que eu buscava naquela época. Se já houvesse um meio salafista, eu possivelmente teria aderido à guerra santa." Para seres propensos ao extremismo, pouco importa a ideologia por trás do grupo, diz o radical convertido. "A cena do salafismo também teria sido bastante atraente para mim: focada na ação, totalmente além do bem e do mal, e muito elitista. A pessoa faz aquilo que ninguém faz porque está lutando por algo maior. Teria combinado bem. Aí, provavelmente, eu teria uma barba e estaria na Síria." Hora de fazer o bem "Como vou encarar o meu filho?", foi a questão que levou Karl a recuar. "Família ou prisão", diz, são os principais motivos que levam alguém a largar o extremismo. Ele conseguiu: construiu uma nova vida e até reatou os laços com os pais. "Viciado em adrenalina" que é, trocou o frisson das armas e da violência por carros e motocicletas velozes. Com ajuda estatal, seus dados pessoais também estão protegidos nos órgãos públicos. Só nas batidas policiais é que Karl às vezes acaba "indo parar no chão e sendo revistado". "É desagradável, principalmente se há conhecidos no carro que não sabem nada do meu passado", admite. A frase "agora é a tua vez" poderia valer, hoje, para o novo objetivo que Karl se impôs. Não destruir, mas sim, finalmente, fazer algo de bom: abrir os olhos dos outros para os perigos do radicalismo de direita, "porque há um desinteresse, um olhar para o outro lado, um 'isso não existe na minha cidade'." Por isso, hoje Karl conta sua experiência em escolas, informa aspirantes a policiais e fala à Deutsche Welle. Ele rechaça toda forma de racismo, não quer nunca mais selecionar os seres humanos segundo quaisquer características. O jovem pai quer que seu filho jamais sinta "insuficiência emocional" e apela apaixonadamente por mais sentimento humano na sociedade. Ao se despedir da reportagem, revela às vezes se lembrar de seus colegas de escola: "Se eles soubessem no que eu ia me tornar, talvez nunca tivessem me jogado dentro da lata de lixo." Autor: Andrea Grunau (fca)Edição: Augusto Valente
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