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"Mostramos que 'Charlie Hebdo' não estava morto"

08:00 | 26/06/2015
Em rara entrevista, quase seis meses depois do atentado que matou 12 pessoas na sede do jornal satírico, editor-chefe Gérard Biard fala da necessidade de continuar o trabalho jornalístico e não ceder à ameaça terrorista. Em 7 de janeiro de 2015, o atentado de terroristas islâmicos à redação do semanário satírico Charlie Hebdo, em Paris, abalou a França e a Europa. Doze pessoas morreram, entre elas jornalistas da publicação. Para os sobreviventes, ficou o desafio de conviver com o trauma. Quase seis meses depois, o editor-chefe do Charlie Hebdo, Gérard Biard, concedeu à DW uma rara entrevista. Só por um acaso ele sobreviveu ao ataque. Submetido ao grau de segurança máximo da França para pessoas, ele vive hoje sob vigilância permanente. Apesar das consequências do ataque, ele diz que a equipe do jornal vai "continuar fazendo o que fez até agora". Biard reconhece que os desenhos e textos relativos ao islamismo publicados no semanário podem levar a atos terroristas, mas parar por causa disso seria como "ser vítima de uma chantagem da máfia e ceder". DW: Pode descrever como vivenciou o momento do atentado? Gérard Biard: Quando ocorreu o ataque, eu estava de férias, em Londres. Um membro da redação me ligou, disse que havia mortos, tudo ainda estava muito confuso. A partir daí, o telefone não parou mais de tocar. Aos poucos compreendi que algo terrível tinha acontecido, mas, é lógico, não conseguia alcançar ninguém no local do ataque. Então, fui para a embaixada francesa e lá, pela primeira vez, tive noção das proporções do acontecimento. A embaixadora e o pessoal de segurança me explicaram o que ocorrera, quem fora morto e ferido. Voltei para Paris ainda no mesmo dia. Tudo era tão irreal, a gente não conseguia acreditar que uma coisa assim pudesse ter acontecido. É certo que somos jornalistas, mas não somos repórteres de guerra, vivemos numa democracia. Trabalhamos num escritório, e quando acordamos de manhã, não pensamos que estamos arriscando a nossa vida, mesmo que sejamos ameaçados. O senhor publicou uma nova edição logo em seguida ao atentado. Quais eram seus motivos para continuar? Quando voltamos a nos ver em 8 de janeiro, um dia depois do atentado, a decisão unânime na redação era editar imediatamente uma nova edição para a semana seguinte. Foi o que fizemos. Depois que saiu esse número, havia duas correntes contrárias no Charlie Hebdo: uns queriam continuar exatamente como até então, publicando um tabloide por semana. Eu fazia parte desse grupo. Os outros queriam fazer uma pausa de cinco, seis meses, e Luz [o desenhista Renald Luzier] era um deles. Então, chegamos a um meio termo, ficando sem publicar durante cinco semanas. Mas acho que isso não bastou para Luz, ele queria se retirar da coisa toda, fisicamente mesmo. Por que o senhor continuou? Eu tinha que trabalhar, tinha que fazer o que sempre havia feito. Eu precisava disso pessoalmente. Mas isso também era necessário para o jornal; tínhamos que mostrar que o Charlie Hebdo não estava morto. A ideia era continuar na mesma linha jornalística ou mudar algo? Mantivemos a linha jornalística, não mudamos nem o tom nem as opiniões. Permanecemos um semanário satírico e crítico, com reportagens, análises e comentários e, é claro, com desenhos satíricos. Continuamos nos concentrando na política francesa, em temas da sociedade, ainda somos anticlericais, somos ateus, combatemos o totalitarismo. O senhor continua sendo capaz de lidar de forma humorística com o islã extremista e também de provocar? Eu rejeito o conceito de provocação. Somos comentaristas, não provocadores. Somos bem menos violentos do que engraçados. Sabemos que nossos desenhos e textos relativos ao islamismo podem levar a atos terroristas, que podem favorecer o terrorismo, mas temos que aceitar isso. Parar por causa disso? Não creio. Seria como ser vítima de uma chantagem da máfia e ceder, e aí a coisa nunca tem fim. Quando acontece algo assim tão terrível, não é preciso que alguma coisa mude? As coisas não podem continuar como antes, não? O ônus da perda pesa muito sobre nós todos. Mais ainda sobre os desenhistas, pois toda vez que pegam o lápis, eles são forçados a pensar no que ocorreu. Possivelmente foi por isso que Luz parou. Ele não conseguia mais desenhar livremente, quando pegava o lápis na mão. Comigo é diferente: eu escrevo como sempre escrevi. O senhor fala de briga na redação, de duas correntes distintas, duas alas. Por onde passam as linhas divisórias? Gritaria, resmungos mútuos, isso acontece em toda redação do mundo. O Charlie Hebdo sempre passou por isso. Somos uma redação de identidade forte, um jornal de artistas, um jornal de egoístas. Se hoje, ou dez anos atrás, a senhora colocasse uma câmera ou um microfone em meio a uma reunião da redação, os espectadores diriam: "Isso não é possível, eles se odeiam, ficam berrando uns com os outros." A única coisa que mudou é que agora somos objeto de interesse midiático. Tenho a impressão de que a mídia gostaria de fazer um reality show sobre a gente, uma espécie de Big Brother: quem foi para a cama com quem, quem entra na equipe, quem deixa a casa. Como o senhor consegue novos desenhistas, agora que quatro foram mortos no atentado? Recebemos um número enorme de desenhos, mas a maioria não podemos publicar. O critério de qualidade é simplesmente alto demais. Havia talentos nessa redação que não há como substituir. E nós não podemos baixar o nível, isso seria instolerável. O senhor faturou muito após o ataque. Se pudesse decidir sozinho o que fazer com tanto dinheiro, qual seria a sua resposta? Vamos continuar fazendo o que fizemos até agora. O Charlie Hebdo sempre foi um jornal independente, nunca tivemos acionistas externos. Os que fizeram o jornal também são donos dele. Nunca houve publicidade, vivíamos das vendas e dos nossos assinantes. Antes perdíamos dinheiro com a publicação, hoje ganhamos, embora saibamos que a coisa não vai continuar assim eternamente. Por isso, agora está na hora de refletir sobre o que fazer para sobreviver a longo prazo com o jornal. Como convive com as medidas de segurança rigorosas que vieram após o atentado? Até que ponto elas mudaram a sua vida? A vida mudou. Sinto falta da improvisação, da espontaneidade. "Ah, o tempo está bonito, vou passear lá fora." Tenho que planejar uma coisa assim. Posso fazer de tudo, com certeza, mas tenho que planejar de antemão. Isso limita um pouco a minha vida. Autor: Susanne Dörhage (av)Edição: Luisa Frey
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