Com falta de insumos, Centro de Convivência Antônio Justa está sob risco de desativação e transferência de pacientes

Defensoria Pública do Ceará (DPCE) pediu esclarecimentos à Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) sobre falta de alimentação e materiais de higiene e limpeza no local, além do possível deslocamento de pacientes para Redenção

15:08 | Ago. 14, 2020

PAVILHÕES do Centro de Convivência Antônio Justa, em Maracanaú, onde seis idosos residem (foto: DIVULGAÇÃO Coletivo Antônio Justa Presente)

Criado há quase 78 anos para isolamento compulsório de pessoas diagnosticadas com hanseníase, o atual Centro de Convivência Antônio Justa (CCAJ), em Maracanaú, está sob possibilidade de desativação com transferência dos idosos, sem consulta prévia. A situação foi levada pelo Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA) à Defensoria Pública do Ceará (DPCE), que oficiou a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), responsável pelo equipamento, na última terça-feira, 11, pedindo esclarecimentos.

A pretensão seria de transferir os pacientes para o Centro de Convivência Antônio Diogo (CCAD), localizado em Redenção, outra antiga colônia que recebia pessoas com hanseníase. Existem ainda relatos de negligência com os pacientes do Antônio Justa, onde haveria carência de alimentos, materiais de higiene e limpeza, além da necessidade de assistência médica e problemas estruturais no prédio.

O POVO apurou que no local ainda residem seis idosos, com idades entre 60 e 87 anos. Alguns estão lá há mais de 50 anos e têm sequelas provenientes da doença, como mobilidade reduzida. Não raramente, funcionários precisam fazer “cota” para comprar alimentos ou trazem de casa itens de limpeza, inclusive durante o atual contexto de pandemia.

Uma equipe de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem se reveza em regime de plantão prestando atendimento contínuo aos pacientes. No entanto, não há suporte médico, psicológico e terapêutico periódico. Os internos dependem do sistema de saúde municipal. Essa articulação, por vezes, esbarra na dificuldade logística porque falta um transporte para o paciente ir a consultas e exames.

A defensora pública Mariana Lobo, titular do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPCE, afirma que um documento repassado pelo EFTA contém informações de “possíveis violações de direitos humanos” ocorridos no CCAJ. “Isso nos preocupou bastante, haja vista que as pessoas passaram uma vida toda naquele mesmo ambiente de segregação da sociedade, e são pessoas já bastante idosas”, reitera.

O EFTA tomou conhecimento do caso após contato do Coletivo Antônio Justa, movimento social com atuação na região desde 2018. A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), presidida pelo deputado estadual Renato Roseno (Psol), também está acompanhando a situação.

Integrante do Coletivo, o historiador e pesquisador Léo Silva caracteriza a possibilidade de deslocamento dos idosos e fechamento do local como uma tentativa de apagar a história. “Temos o problema da saúde mental e física desses idosos, da relação deles com o espaço, da relação entre eles, da memória que essas pessoas têm com o lugar e do próprio equipamento”, aponta o também artista visual.

O assistente social Rodrigo Ferreira, outro membro do Coletivo Antônio Justa, explica que uma das lutas do grupo é para a revitalização do prédio, com a construção de um memorial e de um centro de referência dermatológico. Mas para isso, não seria necessário transferir os idosos. “É um desrespeito com as pessoas que construíram sua vida nesse espaço, com os profissionais que contribuíram. Acredito que essa mudança, que visa de fato o corte de gastos, não é uma saída efetiva”, considera.

Uma resposta da Sesa ao ofício enviado pela Defensoria é aguardada em até dez dias. Ponderando que ainda não existem informações oficiais por parte do órgão estadual, a defensora Mariana Lobo ressalta que a transferência dos internos, sem diálogo com os familiares ou com a equipe técnica, poderia resultar no aprofundamento das violações de uma política adotada pelo estado brasileiro no passado, fundamentada na segregação e estigmatização das pessoas com hanseníase.

De acordo com a advogada Cecília Paiva, do EFTA, o sucateamento do CCAJ é acompanhado pela entidade desde 2018. Ela argumenta que a transferência dos internos vai contra a ideia de reparação da dívida social histórica do Estado para com os pacientes, que desejam ficar. “É uma situação de descaso enorme com a condição subjetiva desses pacientes. A tendência é que eles não consigam se adaptar em outro local, podem ter casos de depressão”, aponta.

Nesta quinta-feira, 13, O POVO entrou em contato com a Sesa questionando sobre as denúncias em relação à falta de alimentos e de outros produtos básicos no CCAJ e acerca da possibilidade de transferência dos idosos para Redenção. Porém, até o fechamento desta matéria, nesta sexta-feira, 14, não houve retorno da pasta.

Lembrar o passado para não repeti-lo

A antiga Colônia Antônio Justa foi inaugurada em dezembro de 1942 por meio de uma política de saúde nacional na época em que a única forma de controle da hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra, era o isolamento compulsório. Seu sistema funcionou até meados dos anos 1980, apesar dos normativos legais colocarem fim à política de internação obrigatória entre as décadas de 1960 e 1970.

Assim como outras colônias espalhadas pelo Brasil, a Antônio Justa se expandiu, dentro de seus limites demarcados por muros para impedir a saída dos enfermos. O local conta com equipamentos como igreja, refeitório, farmácia e até cineteatro. A descoberta da cura levou ao rompimento dos muros. Ao longo dos anos, uma série de ocupações foram registradas, resultando no atual bairro Antônio Justa, onde residem mais de 2 mil pessoas.

No entanto, o vínculo social rompido no passado impossibilitou o retorno de muitos dos pacientes ao convívio familiar. Assim, eles criaram novos laços com os funcionários e a comunidade do entorno.O Coletivo Antônio Justa Presente reúne moradores, filhos de ex-pacientes e pesquisadores.

O movimento reivindica a reestruturação do CCAJ e melhorias para o bairro, que tem demandas relacionadas a transporte, segurança, saúde, educação e regularização fundiária.

“O Coletivo tem essa importância de trazer à tona essa memória, que diz não só da recuperação de um passado violento, mas da afirmação das vidas que estão hoje nesse bairro e do quanto é importante que reparações sejam feitas, que é o que ainda está faltando por parte do poder público: reparar uma história que foi o próprio Estado que criou”, relata o historiador Léo Silva.

A advogada Geovana Patrício, assessora jurídica do mandato do deputado estadual Renato Roseno (Psol), vem acompanhando a situação do local há quatro anos. Uma audiência pública chegou a ser realizada em 2018 na Assembleia para discutir o caso.

Segundo ela, todos os anos são apresentadas propostas de emenda orçamentária para a digitalização do acervo e a criação do memorial no Centro “que conte a história da colônia, a fim de que se lide com esse passado traumático e este não se repita”.

“Acreditamos que através da implementação de um memorial e de um centro de referência dermatológico naquele espaço a sua gestão poderia ser melhorada e problemas como esses não voltariam a ocorrer pois os internos teriam uma atenção mais próxima”, defende Geovana Patrício.

Em novembro de 2018, o Coletivo Antônio Justa Presente deu entrada na Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) em ação solicitando o tombamento do CCJA e de outros prédios construídos na época da antiga colônia. Em nota, a Coordenadoria de Patrimônio Cultural e Memória (Copam) da Secretaria informou que “o processo ainda não foi apreciado”.

Doença tem tratamento pelo SUS hoje


As pessoas com hanseníase, excluídas do convívio social até 1970, hoje podem encontrar remédios gratuitos nos postos da rede básica do Sistema Único de Saúde (SUS). O tratamento, feito por meio de comprimidos, dura, em média, de seis meses a um ano e pode resultar na cura completa.

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica causada pela bactéria Mycobacterium leprae e afeta, principalmente, a pele e os nervos de mãos, pés e olhos. A contaminação se dá por meio de gotículas de saliva, espirro ou tosse de uma pessoa doente. Logo que se inicia o tratamento, o paciente deixa de transmitir a doença, daí a importância do diagnóstico precoce.