Em cinco anos, Ceará registra mais de seis mil crimes contra meio ambiente e povos tradicionais
De acordo com o boletim Além da Floresta, o Ceará notificou 6.214 crimes contra o meio ambiente e povos tradicionais entre 2019 e 2024. Estado foi o único do País a não fornecer dados qualificados
09:46 | Jun. 18, 2025
Um levantamento realizado pela Rede de Observatório da Segurança revelou que o Ceará registrou 6.214 crimes contra o meio ambiente e povos tradicionais entre os anos de 2019 e 2024. As informações, publicadas no boletim Além da Floresta, foram divulgadas na terça-feira, 17.
Os dados descortinam ainda que os municípios de Ibiapina (28,22%), Fortaleza (19,95%) e Caucaia (11,92%) concentraram 61,9% dos crimes notificados contra indígenas no Estado no último ano.
Ao todo, o Ceará informou 218 crimes contra indígenas em 2024. O número é o maior já registrado desde 2013, quando foram notificados 311 delitos dessa natureza. Estado foi o único do País a não fornecer dados qualificados, detalhando as tipologias de crimes.
Socióloga e pesquisadora da Rede de Observatório da Segurança, Fernanda Naiara explica que “os crimes ambientais estão diretamente relacionados aos crimes contra pessoas indígenas e comunidades tradicionais, porque são essas pessoas que vão estar na defesa desses territórios também. Então, consequentemente, vão ser mais afetadas por eventos de violência, por ameaças, por tentativas de homicídio, assassinatos”, dentro desse cenário.
De acordo com a pesquisadora, o relatório revela ainda que o Ceará tem um número muito alto de registros de violência contra a mulheres no contexto indígena, especialmente em razão da atuação de liderança desse grupo dentro de suas respectivas comunidades. Em 2024, as mulheres representaram 59,63% das notificações de crimes contra indígenas, segundo o Painel Dinâmico da SSPDS.
Fernanda Naiara conta que o boletim propõe ainda uma discussão sobre a atuação das organizações criminosas nesses territórios, “que criam um contexto de ilegalismo e vulnerabilidade” nessas áreas.
Ceará foi o único estado a não informar dados qualificados sobre crimes ambientais ao relatório
Entre os crimes ambientais monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança (fauna, flora, poluição, exploração mineral e outros), o Ceará registrou uma redução de 23,82% no número de notificações em 2024, se comparado ao ano anterior. Ao todo, foram 777 crimes informados no último ano, contra 1.020 em 2023.
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O boletim revelou ainda que 180 municípios cearenses registraram pelo menos um crime ambiental entre 2019 e 2024. Fortaleza liderou o ranking, com 1.693 (27,24%) notificações. Juntas, as cidades de Caucaia (3,34%), Sobral (3,17%), Juazeiro do Norte (2,01%) e Crato (2,41%) registraram 680 crimes ambientais.
Para a elaboração do boletim, o levantamento da Rede de Observatório da Segurança reuniu informações coletadas, via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto às Secretarias de Segurança Pública e órgãos correlatos em nove estados brasileiros. Desses, apenas o Ceará não forneceu detalhamentos suficientes sobre os crimes ambientais praticados na região.
"Nós recebemos essa tabela, que foi enviada por eles e que só tem um total de dados, não tem tipificando quais são os tipos de crimes ambientais que tem no Ceará, o que é uma diferença contrastante quando você olha para os outros oito estados da rede", detalha Fernanda Naiara, destacando a falta de padronização e a dificuldade de acesso às informações sobre crimes ambientais nos diferentes estados brasileiros.
Advogado ambiental, Daniel Puglica avalia como preocupante a ausência de dados qualitativos sobre os crimes contra o meio ambiente. “Se nós não temos esses dois parâmetros, seja ele qualitativo ou quantitativo, a gente fica um pouco vulnerável na apresentação de políticas públicas que possam vir a contribuir com a proteção ambiental e com desenvolvimento sustentável”.
Com duas décadas de atuação na área de advocacia ambiental, o profissional revela que os crimes ligados à degradação ambiental costumam estar vinculados ao uso específico de alguma área do solo. “Ocupações urbanas próximas da área de rios, criação de novas estradas, criação de loteamentos, todas essas. Grande parte dos impactos ambientais vão advindo desse tipo de situação, onde eu tenho o antropismo acontecendo em cima disso”, conta.
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Comitê de Combate aos Crimes Ambientais
Em abril deste ano, o Governo do Estado criou o Comitê Permanente de Combate aos Crimes Ambientais (CPCCA). A iniciativa, coordenada pela Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), tem como objetivo integrar esforços de diferentes órgãos para intensificar a fiscalização e combater práticas que ameaçam a fauna, a flora, os recursos hídricos, o patrimônio cultural e que contribuem para a poluição. Apesar disso, a tipificação dos crimes não foi informada.
O POVO procurou a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e a SSPDS/CE para explicar a ausência dos dados no boletim Além da Floresta, além de questionar como as políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente e dos povos tradicionais estão sendo construídas no Estado sem essas informações.
A Semace informou que o setor de Fiscalização levantou os dados referentes à Comunicação de Crimes que o órgão encaminhou ao Ministério Público nos anos de 2023 e 2024.
Em 2024 foram 341 notificações (46 contra a fauna; 41 contra poluição; 54 contra a flora; 11 extração mineral e 178 sem licença), contra 489 registradas em 2023 (46 contra a fauna; 40 contra poluição; 6 extração mineral; 286 sem licença; 99 contra a flora). A Comunicação não representa registro oficial de crime ambiental nos dados da SSPDS.
Em nota, a SSPDS/CE, ainda sem especificar as tipologias de crimes ambientais, informou que o Ceará apresentou uma redução de 10,7% nos indicadores de ocorrências de crimes ambientais nos cinco primeiros meses deste ano.
De janeiro a maio de 2025, foram registrados 293 casos, enquanto no mesmo período de 2024, 328 crimes ambientais foram registrados no Estado. Os dados foram extraídos para Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), vinculada à secretaria.
Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará
Para a Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince), “os números revelam uma realidade inegável: a violência tem atingido os territórios indígenas do Ceará”. Procurada pelo O POVO, a pasta informou, em nota, que sua atuação é voltada prioritariamente aos povos indígenas em contexto de aldeamento.
“No entanto, reconhecemos que há indígenas vivendo em praticamente todos os municípios do Ceará. Um exemplo emblemático é o município de Caucaia, onde vivem os povos Anacé e Tapeba, e que apresenta um histórico significativo de violência”, diz um trecho da nota.
Conforme a Sepince, para o povo Tapeba, que está inserido em um contexto urbano, a realidade “é ainda mais desafiadora: há décadas esse povo enfrenta os impactos da violência causada por facções criminosas atuantes na região”.
Para enfrentar essa situação, a pasta afirmou que tem buscado estabelecer um diálogo mais direto e assertivo com as forças de segurança do Estado, além de atuar firmemente na interlocução e na defesa dos direitos do povo Tapeba, fortalecendo sua proteção e visibilidade.
A Secretaria informou ainda que, em 2023, firmou acordo de cooperação com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), que resultou na criação do Painel Dinâmico de Monitoramento, que fornece dados atualizados e concretos sobre os crimes cometidos contra indígenas, permitindo a elaboração de estratégias mais eficazes de enfrentamento.
Além disso, foi instituído um Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Segurança para os Povos Indígenas, composto por órgãos estaduais e federais e coordenado pela Sepince. A iniciativa atua de forma integrada para combater e coibir diferentes formas de invasão aos territórios indígenas — sejam elas feitas por posseiros ou por facções criminosas.
Em parceria com a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), a pasta destaca que quase 200 jovens ambientais indígenas hoje atuam em seus próprios territórios. A Sepince informa ainda que, até o final do ano, deve ser concluído o Plano Estadual de Segurança dos Territórios Indígenas, “uma política estratégica para garantir proteção efetiva e ações integradas nos territórios”.