A revolução pelo afeto de Nise da Silveira chega a Fortaleza
Exposição na Caixa Cultural propõe imersão sensível no método que rompeu com práticas violentas da psiquiatria e revela, por meio da arte, o legado da médica que transformou a saúde mental no Brasil
16:08 | Nov. 29, 2025
“Depois de um ano na prisão, fiquei com mania de liberdade.” A frase da psiquiatra Nise da Silveira dimensiona a experiência vivida por ela durante o Estado Novo e antecipa o espírito que guiaria toda a sua trajetória.
Talvez por essa mesma “mania de liberdade”, a médica alagoana se tornou um símbolo de como a arte pode conduzir a mente humana por caminhos de libertação.
A trajetória da mulher que transformou a vida de internos de um dos hospitais psiquiátricos mais importantes do Rio de Janeiro é tema da exposição “Nise da Silveira — A revolução do afeto”, aberta ao público na terça-feira, 25 de novembro, na Caixa Cultural Fortaleza.
Dividida em núcleos, a mostra combina obras do Museu do Inconsciente, criado por Nise em 1952 para receber a produção dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro, e de artistas contemporâneos.
“A revolução do afeto” reúne obras de nomes como Carlos Pertuis, Fernando Diniz, Adelina Gomes, Emygdio de Barros e Arthur Amora, que eram internos do hospital, ao lado de criações de Rafa Bqueer, Tiago Sant’Ana, Abraham Palatnik, Lygia Clark, Leon Hirszman, Margaret de Castro, Carlos Vergara e Zé Carlos Garcia.
No primeiro núcleo, os visitantes conhecem a trajetória de Nise e o contexto no qual ela desenvolveu a metodologia de trabalho. Única mulher formada em medicina em uma turma de 157 alunos da Faculdade de Medicina da Bahia nos anos 1930, foi casada com o sanitarista Mario Magalhães e, por ser ativista e militante, acabou presa durante o Estado Novo de Getúlio Vargas.
Na prisão, conheceu Graciliano Ramos e Olga Benário, além da sufragista Maria Werneck, que lutou pelo direito ao voto feminino no Brasil.
Foi nos anos 1940 que Nise começou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, também conhecido como Colônia Juliano Moreira, no Engenho de Dentro (RJ).
Nessa época, a trajetória da médica cruzou o caminho de dona Ivone Lara, cuja carreira como enfermeira e assistente social é pouco conhecida. Juntas e de forma pioneira, passaram a utilizar a música como forma de tratamento e mostraram o poder curativo de cantar e tocar instrumentos.
Como não concordava com práticas como a lobotomia e os eletrochoques, muito em voga no período, Nise decidiu apostar em outra seara e criou um ateliê de arte para incentivar os internos a revisitarem as imagens do inconsciente.
Combinados, a leitura dessa produção por parte dos médicos e o processo de criação foram, aos poucos, se revelando tratamentos muito eficientes.
A amizade e a troca de cartas com o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung ajudaram e impulsionaram as pesquisas.
Com curadoria do estúdio M’Baraká e consultoria do museólogo Eurípedes Júnior, a mostra, que fica em cartaz até 1º de março de 2026, propõe uma imersão sensível e poética sobre o universo da psiquiatra por meio de 157 obras de 11 artistas.
São pinturas, desenhos, fotografias, gravuras, esculturas, documentos e recursos audiovisuais que convidam os visitantes a refletirem sobre o conceito de loucura por meio de um resgate histórico entre o campo das artes e da saúde mental.
Durante todo o período da exposição serão realizadas atividades como visitas mediadas, palestras e oficinas, além do lançamento do livro “Do asilo ao museu: Nise da Silveira e as coleções da loucura”, de autoria do consultor especialista da mostra, Eurípedes Júnior.
Em contato com os pensamentos e objetos que contam a história da psiquiatra, a ideia é que o público deixe a exposição com uma compreensão do método revolucionário criado por Nise da Silveira.
Escutar, acolher, sentir, perceber, libertar
Para além da dimensão artística, “A revolução do afeto” aciona debates políticos, históricos e sociais que seguem atuais, especialmente no campo da luta antimanicomial.
Para o psicólogo Ronaldo Pires, militante e figura ativa do Fórum Cearense de Luta Antimanicomial, a exposição dialoga diretamente com quem vivencia, no dia a dia, os desafios da rede de atenção psicossocial.
“E é uma inspiração para todos que compõem a rede de saúde mental, de usuários a familiares”, diz.
Conforme analisa, o trabalho desenvolvido por Nise da Silveira rompe com a lógica tradicional da psiquiatria centrada na exclusão: “Onde o discurso psiquiátrico hospitalocêntrico via impotência, via déficit, a Nise via a potência dessas pessoas”.
Na avaliação do psicólogo, a médica alagoana construiu um olhar radicalmente distinto sobre pessoas em sofrimento psíquico.
“Ela viu múltiplas possibilidades de ser entre essas pessoas que eram isoladas da sociedade e vistas como não-pessoas, como não-humanos”, observa.
Ronaldo destaca que essa mudança de perspectiva ajuda a atualizar a maneira como a sociedade compreende a loucura, o que tem conexão direta com os princípios da luta pelo fim dos manicômios.
“Ela lutou contra um sistema de práticas desumanizantes e que empreendia violência. A prática dela é revolucionária, no sentido de que ela rompe com esse paradigma de exclusão, de negação da palavra, da singularidade das pessoas com sofrimento psíquico. Esse rompimento se expressa no resgate da criatividade.”
“A arte, para mim, é o melhor psicotrópico”
A “revolução pelo afeto” de Dra. Nise, como era conhecida, também alcança quem carrega, na própria trajetória, marcas profundas.
Figura central no movimento antimanicomial no Ceará, o artista plástico José Crispim, 66 anos, que superou a internação psiquiátrica por meio da arte, fica emocionado ao falar da psiquiatra: “Posso dizer que sou uma semente que ela plantou e que germinou”.
Foi nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que esse legado se materializou em sua vida. “Quando eu cheguei no Caps, depois de passar várias vezes pelos manicômios, foi lá que as pessoas descobriram um talento que eu tinha. Foi então que conheci as artes plásticas”, conta.
Desde então, Crispim usa sua arte como ferramenta de militância e transformação. Em outubro, foi indicado ao Prêmio Nise da Silveira, da Câmara dos Deputados, em reconhecimento à sua trajetória.
“A arte, para mim, é o melhor psicotrópico. E não há efeito colateral. A prova disso é que eu me dediquei totalmente à arte e não faço mais uso de psicotrópico. Hoje o meu psicotrópico é a arte. A arte liberta e a liberdade cura”, expressa.
Ao falar sobre o processo criativo, ele descreve a produção como um espaço íntimo e de expressão profunda: “Eu me sinto em outro mundo, porque ali na arte eu estou jogando todos os meus sentimentos. E eu considero a arte a minha melhor amiga, porque ela guarda segredos. Só eu e ela sabemos o que eu estou sentindo naquele momento”.
Apesar dos avanços na política de saúde mental, ele avalia que ainda há permanências do modelo manicomial. “A mudança foi muito pouca. Os maus tratos continuam”, assegura.
Como exemplo, cita o caso de um paciente morto por estrangulamento no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, em julho de 2022. Ele estava internado em razão de crises de esquizofrenia. “Muitas famílias não vão atrás, não voltam na Justiça e fica por isso mesmo”, denuncia.
O artista aponta a falta de investimentos como um dos principais entraves para mudanças mais profundas.
“Eu lamento que nossos governantes não investem na saúde mental como deveriam, ou seja, com artistas, educadores e com materiais terapêuticos. Porque se nós tivéssemos material terapêutico dentro dos serviços, a história hoje seria bem diferente. Muita gente voltaria para o convívio social e ao convívio familiar.”
Quem foi Nise da Silveira?
Nise da Silveira (1905–1999), alagoana, foi uma psiquiatra brasileira que transformou o tratamento da saúde mental no País. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 15 anos, sendo a única mulher entre 157 formandos, e casou-se com o médico Mário Magalhães.
Rejeitou práticas agressivas como eletrochoque e lobotomia, defendendo abordagens humanas baseadas no afeto, na escuta e na expressão artística.
Valorizou as produções de seus pacientes como pinturas, desenhos e esculturas. Este foi um dos caminhos para o tratamento e o autoconhecimento, fundando o Museu de Imagens do Inconsciente.
Prisioneira do Estado Novo, conviveu com figuras históricas como Olga Benário e Graciliano Ramos. Tornou-se referência na psiquiatria humanizada e na promoção da inclusão e dignidade de pessoas com sofrimento psíquico.
Exposição “Nise da Silveira – A revolução pelo afeto”
- Quando: até 1º de março de 2026
- Horários: de terça-feira a sábado, das 10h às 20 horas; domingos e feriados, das 10h às 19 horas
- Onde: Caixa Cultural Fortaleza - Galeria Multiuso (Av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema)
- Informações: (85) 3453-2770 | @mostra_nise
- Gratuito | Classificação livre | Acesso a pessoas com deficiência