Cearense compara história do Brasil com a do livro ‘Quarto de Despejo'
Pesquisador cearense lança livro sobre os bastidores de "Quarto de Despejo", livro de Carolina Maria de Jesus, com a história das edições e da imagem da autora até tornar-se um cânone da literatura brasileira
14:44 | Ago. 05, 2025

Se hoje Ana Maria Gonçalves, autora de “Um Defeito de Cor”, ocupa a Academia Brasileira de Letras (ABL), é porque antes dela outras mulheres negras lutaram para terem suas obras literárias reconhecidas como tal. Carolina Maria de Jesus é uma delas. Ela é autora de “Quarto de Despejo”, livro que teve 12 edições lançadas no Brasil, desde a sua primeira versão em 1960, até tornar-se um cânone da literatura brasileira.
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“Quando eu li, eu percebi que nunca tinha lido nada igual”, diz Emanuel Régis Gomes Gonçalves, sobre o seu primeiro contato com a obra. Em 2010, quando leu “Quarto de Despejo” pela primeira vez, tinha acabado de finalizar sua graduação em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Durante os quatro anos de curso, ele ainda não tinha ouvido falar da escritora, então decidiu estudá-la.
De lá para cá, são mais de dez anos estudando Carolina Maria de Jesus, o que rendeu também um perfil dedicado a ela no Instagram, além das pesquisas acadêmicas. No dia 10 de junho de 2025, Emanuel Régis lançou o livro “A história editorial do livro 'Quarto de despejo', de Carolina Maria de Jesus: literatura vista de baixo, consagração cultural e luta de classes (1960 - 2020)”. Lançada pela editora Dialética, a produção é fruto da sua tese de doutorado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
No livro sobre o livro, o pesquisador analisa a trajetória de “Quarto de Despejo” a cada relançamento, relacionando o título ao contexto histórico e social do Brasil em cada período. A partir do conceito de “literatura vista de baixo”, Emanuel Régis avalia a recepção da obra de Carolina Maria de Jesus no Brasil ao longo das décadas.
A literatura de Carolina
“Literatura popular” e “literatura periférica”, para ele, não são suficientes para encaixar a literatura de Carolina. “A literatura popular tá muito ligada ao imaginário do campo. Por exemplo, a poesia do Patativa do Assaré a gente pode chamar de poesia popular, porque ela envolve esse imaginário do campo, essas formas herdadas da tradição ibérica”, explica Emanuel Régis. Ele classifica a literatura de Carolina Maria de Jesus como “profundamente urbana e contemporânea”.
O conceito de “literatura periférica”, por sua vez, soa para ele como se a produção literária de Carolina “não pudesse ocupar nunca um espaço central dentro do sistema literário brasileiro”. Ele ainda acrescenta que escritores que vêm da periferia podem, como já o fazem, passar a publicar em grandes editoras e, a partir dessas instituições, ocupar um espaço central.
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Como exemplos, o pesquisador cita Ferréz, Lília Guerra, Paulo Lins e José Faleiro, lançados por editoras como a Companhia das Letras e a Todavia. “Eu acho que há uma impostura aí, de você classificar como periférico uma literatura que, na verdade, ocupa um lugar central na cultura”, afirma. Dos anos de pesquisa sobre os bastidores de “Quarto de Despejo”, aliás, um dos fatos mais curiosos para Emanuel Régis é que todas as edições do livro de Carolina Maria de Jesus são feitas por grandes editoras.
Sendo assim, “literatura vista de baixo” foi o termo cunhado pelo autor para falar sobre a obra da escritora mineira e favelada lá em 2012, no seu período de Mestrado em Literatura Comparada na UFC. Inspirado pela ideia de “História vista de baixo”, ele se dedicou a compreender o que diferenciava a literatura de Carolina de Jesus daquela produzida pelas classes dominantes.
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Parte dessa particularidade está naquilo que chamou a atenção de Emanuel na primeira vez que pegou “Quarto de Despejo” em um sebo: a crueza do realismo e a delicadeza poética. “Era uma visão de mundo que fundia aquela dureza do dia-a-dia da vida dos excluídos, dos setores mais oprimidos aqui da sociedade brasileira, na década de 1950, com uma poesia muito impactante, muito comovente.”, declara o pesquisador.
"Quarto de Despejo", o movimento negro e a história do Brasil
Segundo Emanuel Régis Gonçalves, Carolina Maria de Jesus “vinha sendo redescoberta paulatinamente desde os anos 1980, com o fim da ditadura, porque a ditadura sufocou muito a visibilidade da literatura da Carolina e da figura dela”. Para o pesquisador, a grande virada para o reconhecimento da escritora se deu em 2014, ano do centenário da autora.
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Durante o processo de pesquisa, Emanuel Régis encontrou um padrão nas publicações de “Quarto de Despejo”. Todos os lançamentos do livro coincidem com momentos de grandes crises políticas, econômicas e sociais no Brasil. Para citar algumas, as duas primeiras edições são datam dos anos 1960, antes do golpe da Ditadura Militar. Em 1974, durante a gradual reabertura política e o surgimento de movimentos civis pelos direitos das mulheres e dos negros, surge uma nova edição do título.
O movimento negro e das mulheres também teve, conforme descoberto por Emanuel, grande participação no resgate de “Quarto de Despejo”. Um sinal disso é o evento de lançamento da edição de 1984, no Rio de Janeiro, que contava com as presenças de pessoas como a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, a deputada federal Benedita da Silva e a cantora Elza Soares.
A escritora semianalfabeta na academia
Nessa função de resgatar o nome e a obra de Carolina Maria de Jesus do ostracismo, os estudos acadêmicos também cumpriram um papel importante. Emanuel Régis Gonçalves ressalta que não foi Carolina quem buscou a academia, mas o contrário. “A academia teve que se render à Carolina”, destaca. O autor de “A história editorial do livro 'Quarto de despejo', de Carolina Maria de Jesus", a escritora mineira semianalfabeta ganhou uma notoriedade que impossibilitou o esnobismo de seu valor literário e cultural para o Brasil.
“Ela cria, na minha opinião, uma outra tradição dentro da literatura brasileira. Justamente essa literatura vista de baixo. A possibilidade desses autores que vêm de situações sociais vulneráveis, da favela, dos subúrbios poderem publicar e terem suas vozes ouvidas. Então, a Carolina foi pioneira nesse sentido”, sustenta o pesquisador cearense. Ele espera que seu livro alcance um público maior do que aquele restrito às universidades.
Emanuel Régis decidiu, por isso, “fugir dos jargões acadêmicos” ao escrevê-lo. Ele considera que seu novo lançamento é para quem se interessa pela história da edição no Brasil e pela história do próprio país. Para todo mundo que se interessa pela literatura brasileira.
Livro “A história editorial do livro 'Quarto de despejo', de Carolina Maria de Jesus: literatura vista de baixo, consagração cultural e luta de classes (1960 - 2020)”
- O quê: análise da trajetória editorial da obra e seu impacto na literatura e na cultura brasileira. Com abordagem interdisciplinar e embasamento teórico, a pesquisa examina a recepção do famoso diário de Carolina de Jesus ao longo das décadas, conectando-a a questões de classe, raça e cânone literário
- Onde: Loja virtual da editora Dialética
- Quanto: R$ 84,90
- Instagram: @carolinabitita