Renovação não é esquecimento, é responsabilidade

JUDAÍSMO

01:15 | Dez. 31, 2025

Por: Matheus Alexandre
Matheus Alexandre é judeu associado na Sociedade Israelita do Ceará, doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Especialista de Produção Acadêmica na StandWithUs Brasil (foto: Acervo Pessoal)

O tempo não é universal. O que isso significa é que, embora todos vivamos no tempo, não o organizamos nem lhe atribuímos sentido da mesma maneira. Essa diferença costuma passar despercebida justamente na aproximação das festas de fim de ano, quando celebramos recomeços. Em sociedades de matriz cristã, contamos o tempo pelo calendário gregoriano e estamos prestes a entrar em 2026. No calendário judaico, o ano é 5786. Não se trata apenas de números distintos, mas de formas diferentes de narrar a própria história.

Para a cultura judaica, o tempo não é apenas uma sequência de datas. Ele carrega peso, memória e responsabilidade. Trata-se de um "tempo espesso", no qual passado, presente e futuro se entrelaçam, constituindo um sujeito coletivo e criando vínculos entre gerações. O passado não é algo a ser descartado, mas reinscrito e vivido novamente, orientando escolhas e gerando obrigações. Por isso, enquanto o tempo moderno-ocidental tende a tratar o passado como algo a ser abandonado para que o futuro aconteça, no judaísmo só há futuro quando a lembrança do passado permanece ativa. A ligação com as matriarcas e os patriarcas não nos aprisiona. É ela que permite que a identidade se renove continuamente no presente.

Isso aparece de forma clara em Rosh Hashaná. O Ano Novo judaico não é um "reset". Não é virar a página. É um acerto de contas com o tempo vivido. O futuro não começa limpo. Começa responsável.

No regime moderno-ocidental, sobretudo sob a lógica do progresso, o tempo se transforma em recurso que se perde, se ganha, se investe. Daí a sensação contemporânea de falta permanente de tempo. No judaísmo, a relação é inversa. A lembrança é a própria condição da continuidade.

Festividades como Pessach tornam isso ainda mais explícito. A tradição não diz que eles saíram do Egito, mas que nós, em cada geração, fomos libertos da escravidão. Não se trata apenas de lembrar um fato distante, mas de assumir pertencimento e responsabilidade. O futuro, nesse registro, depende da lembrança ativa do passado. Walter Benjamin chamou atenção para essa lógica ao criticar a ideia de um progresso automático e falar do "tempo-agora": momentos que interrompem o curso linear do tempo e fazem o passado voltar como exigência ética no presente.

Talvez essa seja uma lição importante para a sociedade brasileira. Nosso regime de temporalidade tende ao apagamento. A escravidão colonial é tratada como algo distante. A ditadura, como um passado encerrado. Pensar-nos como a geração que foi escravizada e a que escravizou, como a geração que foi vítima e que vitimou, não significa igualar responsabilidades individuais, mas reconhecer continuidades estruturais. Sem essa reinscrição do passado no presente, o autoritarismo retorna como nostalgia, piada ou ausência de compromisso.

A ideia dominante de Ano Novo associa renovação ao abandono do passado. Virar a página, abandonar, recomeçar "do zero". O problema é que, quanto mais se busca o novo pelo esquecimento, mais se repete aquilo que não foi elaborado. E se tratássemos acontecimentos societários e familiares de gerações anteriores como parte da nossa própria biografia ampliada? Talvez não herdássemos culpa, mas responsabilidade. A renovação que ignora o passado produz esquecimento. A renovação que o elabora produz compromisso.


Matheus Alexandre é judeu associado na Sociedade Israelita do Ceará, doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Especialista de Produção Acadêmica na StandWithUs Brasil