Provações, dignidade e a misericórdia que refaz o mundo

Islamismo

01:15 | Dez. 31, 2025

Por: Felipe Freitas de Souza
Felipe Freitas de Souza (foto: Acervo Pessoal)

Recomeçar não é uma metáfora bonita: é uma obrigação espiritual inscrita na própria história do Islam. Desde o início, aprendemos que a vida humana só se sustenta porque Deus nos devolve, a cada dia, a possibilidade de reconstruir o que foi quebrado. O Alcorão afirma que "honramos os filhos de Adão" (17:70) e essa honra implica reconhecer que a dignidade humana é inviolável mesmo quando atravessamos falhas, traumas ou quedas. Recomeçamos porque Allah nos dignificou a ponto de não permitir que uma vida seja reduzida ao pior momento que viveu.

O Profeta Muhammad conheceu recomeços sucessivos: a infância órfã; o trabalho duro como pastor; o comércio honesto que o formou; a Revelação que o isolou de sua própria família e amigos; a morte de quase todos os seus filhos. Contudo, é justamente desse acúmulo de provações que emerge o exemplo mais luminoso para todos os muçulmanos — sunitas ou xiitas — e para todos os que buscam sentido na adversidade. Longe de ser uma sequência de ruínas, a vida do Profeta é um exemplo de constante crescimento e compreensão.

A abençoada família do Profeta também viveu provações extremas: fome, cerco, perseguição política, martírio. O Islam nunca romantizou o sofrimento, mas sempre mostrou que dele se extrai uma gramática ética. Superação, no Islam, não é um slogan: é a forma pela qual Deus educa os Seus servos. O Alcorão recorda que "com a adversidade vem a facilidade" (94:5-6), e isso não é apenas promessa. É método.

Ao contrário do espírito punitivo do nosso tempo, o Islam não é a religião do cancelamento. Muitos dos primeiros muçulmanos chegaram ao Profeta com passados violentos, vidas desordenadas, hostilidades antigas. Nenhum foi rejeitado. Pessoas mudam, crescem; Allah conhece os seus caminhos, e é mais Perdoador que uma mãe com seu filho. A misericórdia no Islam é mais profunda do que qualquer moralismo superficial. O Profeta defendia quem era humilhado por seu passado, porque sabia que a honestidade do arrependimento vale mais do que a arrogância de quem aponta o dedo.

A trajetória humana inteira revela vulnerabilidade e cuidado. O Alcorão insiste que a hipocrisia nasce de julgar o outro sem conhecê-lo, enquanto a sabedoria nasce de observar o mundo com justiça, proteger quem sofre opressão e tirar lições morais sem reduzir ninguém a rótulos. Allah abre continuamente a porta do arrependimento: não importa o passado, importa o retorno. E esse retorno só é possível se houver paciência — paciência ativa, força interior, capacidade de se levantar mesmo depois de traumas inimagináveis.

Recomeçar, portanto, não é um gesto voluntarista; é um princípio espiritual que nos impede de identificar pessoas com seus erros ou sofrimentos. Há dignidade mesmo na dor, porque nenhum ser humano é definido pela queda, mas pela capacidade de se erguer e caminhar novamente, pela ajuda de Allah. É por isso que precisamos recomeçar: porque a misericórdia refaz o que a vida estilhaça e porque Allah nos criou para sermos melhores amanhã do que fomos ontem.


Felipe Freitas de Souza é pesquisador e coordenador pedagógico, mestre em Educação Tecnológica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG), pedagogo. Tem 41 anos, é pai da Amani e de outros três bebês que estão na próxima vida. É muçulmano desde 2010.