Completa 100 anos a revolta urbana em Fortaleza em protestos contra serviço de bondes
Aumento do preço das passagens e a divisão dos veículos por classe implementadas pela Ceará Tramway, Light and Power causaram indignação nos usuários dos transportes
18:09 | Set. 29, 2025
Há 100 anos, Fortaleza foi palco de uma revolta urbana. O movimento começou com estudantes e teve a adesão de trabalhadores. O motivo foi a insatisfação com o serviço de transporte por bondes elétricos, principal meio de transporte da população na época.
Durante dez dias, protestos danificaram os bondes. Houve ameaça ao gerente da empresa responsável. Até explosivo chegou a ser colocado nos trilhos e chegou a causar danos em um veículo. A série de manifestações ocorreu em um contexto de urbanização, modernidade e custo de vida.
O cenário de Fortaleza na época
Em abril de 1913, os primeiros bondes elétricos chegaram a Fortaleza, transformando a realidade do transporte público, antes realizado pela tração animal. Após adquirir a antiga Companhia Ferro Carril, a chegada da empresa inglesa Ceará Tramway, Light and Power alterou o cotidiano dos fortalezenses.
A primeira viagem com o equipamento elétrico saiu da Praça do Ferreira, no Centro, ponto importante da cidade e que, alguns anos mais tarde, seria o palco dos protestos com demandas relevantes sobre o funcionamento dos veículos na Capital.
A novidade atraiu curiosos para o momento da saída do primeiro veículo por Fortaleza. O professor de História (Seduc-CE) Eduardo Parente, doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a estreia dos veículos foi um grande acontecimento por representar mais um passo da Capital rumo ao progresso.
“Era um sinal de uma modernização urbana que ganhava ímpeto. A eletricidade, vista como uma forma nova, moderna, progressista de garantir um melhor atendimento do próprio serviço, um sinal da modernidade. O bonde como um signo dessa modernidade urbana. O início da circulação foi um momento de euforia, de otimismo. Era um sinal de que Fortaleza estava dando mais um passo no caminho do progresso, no caminho de uma civilização urbana mais avançada”, analisou.
O professor e mestre em História pela UFC Jorge Sampaio explica que a cidade seguia um padrão cultural ligado a países europeus, como a França e a Inglaterra. Na época, a eletricidade era uma novidade, principalmente pelo fato de que parte da população ainda não tinha acesso à energia elétrica, e, consequentemente, isso alterou o cotidiano das pessoas.
“A eletricidade é uma força invisível. Essa novidade causa uma série de transtornos para a população. Antes, o bonde de tração animal parava na hora que o cocheiro queria. Com o bonde elétrico, você vai ter paradas permanentes determinadas. As distâncias da época são completamente diferentes do que a gente analisa tempo e velocidade, hoje. Por exemplo, as linhas férreas do bonde naquela época tinham 500 metros. Você pode pensar, ‘mas 500 metros eu faço a pé’. Faz, mas a velocidade e as distâncias têm outra conotação há 100 anos”, explicou.
Em uma cidade em que o trânsito de automóveis não era costumeiro, a circulação de pessoas pelas ruas e as dimensões das calçadas, por exemplo, seriam alteradas. Um exemplo do impacto dessas mudanças são os atropelamentos. Jorge Sampaio explica que algumas pessoas foram atropeladas por bondes elétricos que andavam a 12, 13 ou 18 quilômetros por hora. Algo que surpreenderia muitas pessoas atualmente.
“A gente já tinha contato com velocidade como o trem, mas o trem circula a cidade, não adentra. Então, o primeiro objeto coletivo que vai adentrar a cidade vai ser o bonde. Se a gente não tem automóvel, se a gente não tem transporte coletivo, como era a rua? Qual a dimensão da rua? Então, o transporte coletivo vai trazer códigos de postura. Isso é uma das coisas mais importantes. A inovação tecnológica vai começar a pautar o cotidiano da cidade e dos moradores”, explanou.
Essas mudanças modificaram, inclusive, a vivência no Centro da cidade. Inicialmente, o bairro era residencial, onde as pessoas com maior poder aquisitivo moravam.
“O que as pessoas chamavam de Centro, que era mais ou menos ali onde hoje se encontra o Museu do Ceará, a Santa Casa da Misericórdia, o Passeio Público. Era por ali onde a elite morava, muito mais próximo ao porto, pelas negociações e tudo mais. O bonde vai para lá, se iniciam algumas linhas no Centro [...] A novidade começa na parte da cidade onde tem o maior poder aquisitivo e, depois, vai chegando a essas regiões mais afastadas do Centro. A Praça do Ferreira só vai se tornar o coração da cidade quando as linhas de bonde começam a sair de lá”, detalhou o professor Jorge Sampaio.
Funcionamento dos bondes na Capital
Os veículos elétricos logo iniciaram o funcionamento, com a Praça do Ferreira como principal ponto de saída para a maioria das linhas. Os trajetos contemplavam as áreas mais populosas e alguns bairros chamados, na época, de “arrabaldes”, ou seja, mais afastados do Centro da cidade.
A passagem custava em torno de 100 réis e o serviço de bondes contava com cerca de sete linhas, com itinerários que seguiam em direção ao bairro Outeiro, área equivalente à Aldeota atualmente, e à Praia de Iracema, por exemplo. O trajeto mais curto era de 500 metros e o mais longo tinha o percurso de 6 quilômetros, que seguia em direção ao bairro Alagadiço, com trajeto que contemplava onde, hoje, é a avenida Bezerra de Menezes.
No geral, houve um aumento do fluxo urbano, que se tornou mais efetivo a partir do funcionamento dos bondes elétricos.
O bonde começa a desandar
Os primeiros anos de novidade e euforia pela chegada dos equipamentos se foi e a satisfação da população com o serviço da Light acompanhou. As demandas incluíam a ampliação do trajeto para outros bairros, reclamações sobre o asseio e conforto dos veículos e até sobre o atraso registrado em algumas linhas.
Autor do artigo “O Povo em fúria: a revolta urbana de 1925 em Fortaleza”, o professor Eduardo Parente explica que as críticas tomavam forma e antecipavam o clima de tensão que seria registrado.
A gota d’água para a população foram as novas medidas implementadas pela empresa inglesa. No ano anterior à revolta, a Light negociou o aumento das tarifas com o Governo do Estado, na época comandado pelo presidente Moreira da Rocha. Porém, além da elevação no preço das passagens, as mudanças incluíam diferenciações nos veículos.
A ideia da companhia era dividir os bondes em primeira e segunda classe. Os de primeira classe teriam tarifas que custariam o dobro do valor da época. No entanto, os veículos não circulariam simultaneamente e, sim, de forma alternada.
“Em algumas linhas, havia uma preponderância de veículos de primeira classe com tarifas mais altas em detrimento dos veículos com tarifa mais barata. Então, rapidamente foi percebido que havia aí uma artimanha mesmo, que forçaria boa parte da população em vários e vários horários a ter que gastar mais indo nos veículos de primeira classe, já que não haveria veículos do preço anterior”, explicou Parente.
Os sinais iniciais da revolta apareceram logo no primeiro dia da mudança, ema 28 de setembro de 1925. Estudantes do Liceu do Ceará, localizado no bairro Jacarecanga, demonstraram insatisfação com o novo serviço. Trabalhadores também se uniram às críticas e a fúria da população foi intensificando durante o dia. A revolta estourou com os manifestantes danificando os bondes e ameaçando o gerente da Light na época, chamado Mr. Scott.
“Os estudantes deram o estopim inicial, a partida do movimento que já estava ali borbulhando, fervilhando em termos de insatisfação popular”.
Eduardo Parente conta que, em um dos atos, um grupo anônimo colocou explosivo nos trilhos. O artefato danificou as rodas de um dos veículos, mas não deixou feridos. Apesar de o ataque ter sido direcionado à empresa, o ato acabou gerando um efeito reverso e parte da população se mostrou contrária, principalmente pelo fato de que aquele tipo de movimentação não era o que as ações populares daquele momento buscavam demonstrar.
Cenário da época
O professor Jorge Sampaio, que analisou o funcionamento dos bondes na dissertação “Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913-1947”, pontua que a revolta urbana se desdobrou em um contexto de desigualdade social. O movimento estourou após um cenário de secas, carestia e dos efeitos pós-Primeira Guerra Mundial.
“Fortaleza é desde sempre uma cidade muito desigual. Então, qualquer aumento, por exemplo, na passagem de ônibus, é lógico que afeta a vida dos trabalhadores mais humildes. Existiam várias Fortalezas dentro dessa Fortaleza. Isso vai deixar a população menos abastada indignada. A linha de bondes é só mais um motivo, porque essa diferenciação social era gritante. Você tinha casas com energia elétrica nesse centro, enquanto outras casas não tinham. A população já vem sofrendo carestia, secas, não tem trabalho. Fortaleza é uma cidade que exportava muito para a Europa. A Primeira Guerra acaba em 1918, os países europeus estão se recuperando. Então, uma crise econômica evidente”, considerou.
Com isso, a elevação das tarifas e a diferenciação dos bondes elétricos intensificaram esse cenário de desigualdade.
“Quando vem uma medida como essa, que representa uma elevação dos gastos mensais das famílias com passagem de bondes, acaba sendo um catalisador. É como se naquele momento se reunisse de tudo um pouco. A insatisfação do governo estar excluindo as vozes dos trabalhadores nos gabinetes de negociação, o aumento do custo de vida e a importância do próprio bonde na cidade. Dez anos depois da chegada dos bondes, a cidade já era bem maior do que era anteriormente. Não dava mais para dispensar o bonde e, ao mesmo tempo, não dava para gastar mais com ele”, afirmou Eduardo Parente.
Anos antes dessas manifestações, Fortaleza já havia registrado diferentes movimentos, incluindo a greve dos trabalhadores da Light e a revolta popular que derrubou a oligarquia de Nogueira Acióli, em 1912. Para Parente, esses atos teriam pavimentado o movimento da revolta urbana de 1925.
“Se a gente considerar, o tempo ainda era relativamente curto, pouco mais de uma década. Estava ainda na memória popular, como uma demonstração da força que o povo possui quando resolve agir diretamente nas ruas. Eu acredito que tudo isso, de certa forma, compunha ali uma memória que alicerçava a força possível que o povo possui quando resolvia se manifestar, reagir e se revoltar”, avaliou.
Como o povo se articulava
Os atos promovidos pela população ocorreram de forma espontânea a partir da insatisfação popular com as medidas da Light. Segundo o docente, as associações existentes naquela época não influenciaram no planejamento ou na organização dos atos.
“As associações, as organizações estáveis, não tiveram nenhum papel relevante na preparação, na organização ou na mobilização para esse tipo de ação. No caso da revolta de 1925, muitas, inclusive, tiveram debates internos, digamos, no calor dos próprios acontecimentos, com as divergências que surgiram dentro das organizações diante do fato consumado, que era a revolta já em curso. Debates internos sobre como agir naquele momento diante da situação”.
Parente detalha que as pessoas se juntavam em determinados pontos e resolviam agir naquele momento. Esse grupo, então, se dispersava e, em seguida, novos grupos se reuniam de maneira informal.
“Algumas pessoas acreditavam que uma ação direta, ou seja, mais incisiva, um protesto mais firme nas ruas, seria o melhor caminho. E outras que apostavam que, talvez, fosse mais interessante buscar uma negociação junto ao governo estadual ou, como se dizia na época, a presidência estadual. Então, houve toda uma relação de disputa interna nas associações que existiam à época nesse sentido”.
Praça do Ferreira
Considerada o coração da cidade, o espaço da Praça do Ferreira e do entorno teve enorme peso para a revolta, na prática e no simbolismo. Além de concentrar o posto de bondes, a região era próxima de instituições culturais, prédios da administração pública e de instituições bancárias e registrava grande fluxo de trabalhadores e usuários do transporte público.
“A Praça do Ferreira fervilhava de vida em todos os dias e fervilhou também na revolta durante aqueles dias de 1925. Existe uma questão estratégica, já que lá ficava o posto de bondes, ficava a principal sede administrativa da própria Light. As linhas, basicamente quase todas, estariam ali concentradas, indo e vindo. Então era o lugar mais propício para as manifestações em si”, disse Eduardo Parente.
Por outro lado, o professor Jorge Sampaio explica que nem sempre foi assim. Esse cenário ocorre a partir do momento em que o Centro, antes uma área residencial, passa a se tornar uma região comercial.
“Com esse deslocamento das linhas de bonde, a Praça do Ferreira vai começar a ser um centro, até porque as pessoas já estão ocupando ali o Outeiro, então tem outros deslocamentos e a Praça do Ferreira vai passar por várias formulações urbanas [...] À medida que o centro vai virando um bairro exclusivamente comercial, as pessoas mais abastadas vão se deslocando”.
Resposta e negociações
O Estado respondeu aos protestos com a cavalaria da Polícia, que, ao invés de conter a população, contribuiu para gerar ainda mais fúria. Parente aponta que essas ações não “pegaram muito bem” para o próprio governo, pois parecia que o presidente estava mais disposto a proteger a companhia inglesa do que se preocupar em dar uma solução para o povo da Capital.
A revolta urbana durou cerca de dez dias, entre o fim de setembro e começo de outubro. Após o conflito, as negociações entre o governo, a empresa e a população começaram.
Inicialmente, a companhia inglesa não estava disposta a ceder. De acordo com Parente, a empresa se apoiava no fato de ter pessoas dentro do governo estadual ligados à companhia. Porém, devido à repercussão e quantidade de atos registrados na cidade, era impossível não dar alguma resposta diante da situação. “Mesmo que a revolta fosse contida através da repressão, ficaria um clima muito forte de insatisfação, que era impossível saber o que poderia vir mais adiante”.
O diálogo chegou a um resultado. A empresa se comprometeu a implantar reboques nos horários de maior fluxo para garantir a circulação de forma simultânea tanto dos bondes de primeira classe, como dos veículos com passagem mais barata.
Além disso, o professor Jorge Sampaio aponta que as transformações prometidas pela empresa foram simples e eram implementadas nos bondes de primeira classe.
“Trocar a cortina do bonde de primeira classe, pintar bonde, bonde renovado, os melhores horários de circulação sempre são de primeira classe. O de primeira classe é o que tem o menor tempo de espera. Você ia pegar um bonde de segunda classe, o tempo de espera era enorme. Pelo preço que ela cobrava, deveria ter um sistema mais eficiente. Uma das promessas foi essa: ‘A gente vai trocar o nosso equipamento’. Com certeza, primeiro, qualquer medida se dava nos bondes de primeira classe, porque vai atender um outro público. Aí, o de segunda classe ficava sempre em segundo plano”.
Efeitos dos protestos
Parente conta que a revolta ocorreu porque, desde o início das negociações feitas no ano anterior aos protestos, as associações e os grupos que representavam trabalhadores foram excluídos dos diálogos. As mesas de negociação reuniam pessoas da companhia inglesa, agentes públicos do governo e grupos representativos da população em geral.
“Quando a ideia da política mais institucional de gabinete pareceu recusar ouvir ou atender qualquer reclamação, qualquer apelo, qualquer reivindicação popular, isso acabou contribuindo justamente para que, no ano seguinte, a revolta estourasse como estourou. A maior parte da população parecia não estar conseguindo mais ver pelos canais tradicionais, institucionais nenhum aceno, nenhum espaço para as suas demandas. Então, quando veio a mudança operada pela Light, a população se manifestou da forma que era possível”, detalhou Parente.
Como efeitos da revolta, o presidente do Estado, Moreira da Rocha, passou a ser visto como autoritário e “de trato difícil em relação ao povo”.
Além disso, a imagem da companhia da Light também foi afetada negativamente e a população passou a se referir à empresa como um “polvo”, cujos tentáculos se espalham pela cidade e por outros lugares. “Tem aí toda a questão de ser uma companhia de capital internacional. Então, ela passa a contar com um olhar popular negativo diante das suas ações”.
Pós-revolta
Além das medidas realizadas após as negociações, a Light fez poucas ampliações reais nas linhas dos bondes elétricos. Eduardo Parente afirma que a companhia inglesa, aos poucos, deixou de lado os investimentos no setor de transporte, principalmente diante da concorrência com os ônibus.
Nos anos 30, a empresa focou mais no nicho da iluminação pública da cidade e a presença dos bondes elétricos na Capital durou até meados da década de 1940, quando os veículos passaram a ser considerados obsoletos e foram substituídos pelos ônibus.
“Quando tem a guerra, a gente sofre muita queda de energia. A Segunda Guerra Mundial vai de 1939 a 1945. Então, a população já está aderindo ao ônibus e a Light vai ficar com a energia até ser encampada pelo governo no final dos anos 40”, diz o professor Jorge Sampaio.
Assim, os bondes somem da paisagem urbana e passam a figurar somente nas memórias dos fortalezenses que relembram de maneira nostálgica ou saudosista da época.
Para além de 1925, o professor Eduardo Parente analisa que os atos mostram a importância do transporte público para uma cidade que está em crescimento e da força da população.
“Em poucos anos, Fortaleza já tinha aumentado de tamanho, o que leva a gente a pensar na extrema importância de transportes públicos eficientes, cômodos e de custo moderado para a população em momentos diversos. Mostra também a sensibilidade da população em relação a esses aumentos, o quanto um aumento no custo do transporte público repentino agrava a situação econômica da população trabalhadora em geral”, avaliou.