Entenda a crise na Nicarágua que já matou mais de 350 pessoas, entre elas, uma brasileira

De um lado, manifestantes pedem a renúncia do presidente Daniel Ortega, com antecipação das eleições de 2021. Do outro, um governo de caráter autoritário tenta se manter no poder

11:46 | Jul. 26, 2018

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Os protestos que eclodiram na Nicarágua no dia 18 de abril e que seguem até hoje com manifestações de violência e mortes têm raízes que datam da década de 1980. Os motivos que levaram e levam a população às ruas mostram a insatisfação com um governante que se mostrou autoritário ao longo de seus já 16 anos consecutivos. O presidente Daniel Ortega, antes revolucionário, hoje vira às costas a um apelo popular do qual já fez parte e se nega a deixar o poder. Dois lados da moeda geram a maior crise no país em quase 40 anos. 

A razão tida como estopim da crise que se transformou em uma verdadeira guerra civil foi a proposta de uma reforma da Previdência, feita por Ortega. Revoltada, a população foi às ruas, contra a alteração que aumentaria em 0,75% a contribuição dos trabalhadores e reduziria em 5% a pensão dos aposentados. A repressão violenta por parte do governo e a ação de grupos paramilitares já deixou mais de 350 mortos em pouco mais de 3 meses. A situação ganhou maior comoção no Brasil após a estudante Raynéia Gabrielle Lima, 30, ser morta na última segunda-feira, 23. 

[SAIBAMAIS]
O coordenador da pós-graduação em relações governamentais da Mackenzie, Márcio Coimbra, relaciona os protestos populares com as manifestações que tomaram as ruas no Brasil em 2013, que tinham como lema "não são só 20 centavos". "(A reforma da Previdência) é só uma justificativa para entrar no enfrentamento", considera. Tanto que, mesmo após Ortega revogar a reforma em 22 de abril, a população não recuou. E nem diminuíram os confrontos.

Os manifestantes pedem que Daniel Ortega renuncie ao cargo na Presidência, que ocupa desde 2007. A principal demanda dos protestos tem sido o adiantamento das eleições de 2021 para março de 2019. A Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou, no último dia 15, uma resolução para o presidente antecipar as eleições. Ortega, no entanto, já declarou diversas vezes que não vai ceder aos apelos e que só sairá do poder quando acabar seu mandato, alegando que a renúncia “criaria instabilidade, insegurança e pioraria as coisas” . 

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Da revolução ao poder
Daniel Ortega, hoje com 72 anos, era apenas um estudante quando decidiu se juntar aos protestos para tirar o presidente Anastasio Somoza Debayle do poder, em 1950. Naquela época, a Nicarágua vivia um regime ditatorial desde 1936 sob o governo da dinastia Somoza, que sofria influências dos Estados Unidos. A ditadura acabou em 1979, quando o último presidente Somoza caiu. Iniciou-se, então, a Revolução Sandinista, da qual Ortega foi coordenador. 

O revolucionário conquistou a Presidência nas eleições de 1984, com um apoio de cerca de 70% da população. Em 1990, a Revolução acaba e Ortega não consegue se reeleger, devido ao fraco crescimento econômico e à desilusão política do povo. Tentou novamente chegar ao cargo em 1996 e em 2001, sem sucesso. Em 2006, chegou onde está até hoje, com 38% dos votos.
 
O governo de Ortega, nos últimos 16 anos, tem sido cada vez mais parecido com o que ele ajudou a derrubar, avaliam especialistas. Ele instaurou a reeleição indefinida e nomeou juízes para a Suprema Corte, o que lhe garante a permanência no poder até 2022. A oposição o acusa de nepotismo - ele colocou sua esposa, Rosario Murillo, como vice-presidente. Seus filhos também ocupam ocupam cargos importantes em estatais e detêm o monopólio da mídia televisiva no país - e de autoritarismo. 

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"Ele volta ao poder com uma mentira aplicada aos eleitores, que elegeram um governo que acharam ser centro-esquerda mas que, na verdade, era de extrema-esquerda", diz Márcio Coimbra. "Ele sempre teve essa tendência autoritária", afirma. Para o especialista, apesar da existência de eleições, o que ocorre na Nicarágua já é, de certa forma, uma ditadura, devido ao cerceamento de liberdades. As vitórias consecutivas nas urnas se dariam por meio de uma parte da população beneficiada por políticas de assistencialismo. Críticos acusam que as eleições sejam fraudadas. 
 
O integrante do Observatório das Nacionalidades, da Universidade Federal do Ceará, Sued Lima, discorda do posicionamento de Márcio. Ele pontua que, dentro dos protestos, também houve manifestações a favor de Ortega, somando uma quantidade considerável da população. O também coronel aviador diz que muito do que está acontecendo na Nicarágua hoje tem influência dos Estados Unidos, contrários ao presidente de esquerda. "Todos os governantes latino-americanos que assumem uma posição favorável à população são desestabilizados ou derrubados", opina. 

Repressão violenta nas ruas e os paramilitares
Os protestos, que ocorrem principalmente na capital, Manágua, e nas cidades Masaya e Diriamba, têm sido recebidos com violência. O governo tem buscado formas de mostrar poder e grupos paramilitares se incluem no conflito, colocando manifestantes no meio de um fogo cruzado. Segundo Márcio Coimbra, é difícil definir de que lado os paramilitares estão, a favor ou contra Ortega. Mas afirma que, geralmente, esses grupos se colocam contra o governo, como no caso da Colômbia.

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Em caminhonetes e fortemente armados, os paramilitares circulam pelas ruas intimidando a população. Eles são acusados por grande parte das mortes, detenções ilegais e desaparecimentos dos manifestantes. Daniel Ortega nega ter qualquer relação com eles, no sentido de serem forças aliadas ao governo.

O próprio governo já tem mostrado sua força, indisposto a ceder. Três meses após o início dos protestos, no dia 18 de julho, a cidade de Masaya, bastião da oposição, foi cercada por policiais por quase oito horas. Apesar das greves no país e da situação de crise, a celebração dos 39 anos da Revolução Sandinista em 13 de julho foi estendida durante uma semana, uma demonstração de poder. 

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Os conflitos resultam em uma quantidade alarmante de mortos. Conforme a Associação Nicaraguense pelos Direitos Humanos (ANPDH), em seu último balanço, já são 351 mortos, 261 desaparecidos e mais de 2.100 feridos. A ANDPH ainda diz que 738 pessoas haviam sido relatadas como sequestradas por civis armados e policiais (em detenções ilegais) em todo o país apenas entre domingo e madrugada da segunda-feira (23). O governo não tem divulgado números.

Os principais manifestantes são trabalhadores, indígenas e estudantes. Os universitários se destacaram nos protestos com o crescimento do movimento, se tornando, também, vítimas. 

Perspectivas de paz
Enquanto a situação no país não se resolve, a economia, tida como a sexta maior da América Central, sofre. Três hotéis em Léon já anunciaram seu fechamento, além de um resort de luxo. A companhia mexicana Volaris também anunciou a suspensão temporária de voos para o país. A previsão de crescimento da economia para 2018 já foi reduzida de 4,5% a 5% para 0,5% a 1,5%, e a inflação, que chegaria a 6,5%, agora é estimada em até 8,5%. 

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Para Márcio Coimbra, as tensões não parecem estar se encaminhando para uma solução do conflito. “A tendência dele é endurecer, radicalizar, o que pode, inclusive, afetar ainda mais a Nicarágua”, lamenta. Segundo ele, para que se resolva a guerra civil na Nicarágua, o ideal é que Daniel Ortega aceitasse ceder, chamando novas eleições. “A única saída pro conflito é ele sair do governo. Ele pode fechar ainda mais o governo, reescrever a constituição, intervir no judiciário, fazer perseguição às pessoas, pode haver mais mortes e assassinatos. É isso que mais preocupa hoje”. 
 
Sued Lima contrapõe, dizendo que os conflitos devem ser solucionados a partir de de uma aceitação dos manifestantes e da paciência pelas eleições de 2021. "A oposição deve esperar o ano de 2021, que é quando vai ter a eleição, e ganhar a eleição. O Daniel Ortega não está fraco nem politicamente nem militarmente. Ele deve contar com a ajuda do povo", coloca. 

Ortega não tem aceitado nenhuma tentativa de diálogo, nem mesmo da Igreja, que tentou intermediar um acordo com a oposição, a quem ele chamou de “golpistas”. Sem um acordo pacífico, o temor é que seu governo seja derrubado por meio de sangue, como ocorreu com os Somoza no passado.