Entre paus, pedras e "bilas": a década de resistência no Ceará

Movimentos de resistência surgiram no Brasil enquanto atos revolucionários ganhavam capilaridade, a partir da França, para outros países da Europa e da América. Com agenda própria, entidades de classe e estudantes saíram às ruas brasileiras enfrentando um dos mais cruéis adversários: a ditadura militar

14:26 | Mai. 22, 2018

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Enquanto franceses saíam às ruas em 1968, cearenses protestavam caminhando do Benfica ao Centro de Fortaleza. Naquele ano, os manifestantes que percorriam a Avenida da Universidade em direção às praças do Ferreira e José de Alencar traziam os alicerces de anos de insatisfação gritada nas ruas e de enfrentamento contra a polícia. 

Quando os atos revolucionários ganhavam capilaridade na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, alguns grupos de brasileiros já percebiam que somente aquilo não seria suficiente contra um governo militar marcado por cercear participação popular em decisões públicas, afastar parlamentares republicanos, perseguir, torturar e matar adversários políticos.
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Desde 1964, após o marechal Castelo Branco assumir a Presidência, as lideranças sindicais, principais articuladoras de greves e atos de resistência social, passaram a ser muito visadas em todo o País pelos que estavam no poder. Estudantes tomaram a frente das manifestações, conforme explica o professor e historiador Airton de Farias. 

Paralelamente, começaram a surgir demandas próprias nas ruas, algo característico dos movimentos de 1968 em diferentes países. Mesmo dentro de uma nação havia reivindicações particulares de quem protestava. “1968 foi um grande não. Não ao capitalismo, crítica à democracia liberal ocidental, ao socialismo burocrático soviético e ao autoritarismo comunista. Foi um grito de liberdade e de questionamento a tudo”, ressalta o historiador. 
 

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Ousadia, mas nem tanto

Apesar da conjuntura de emancipação se propagando mundialmente, o ex-preso político cearense Mário Albuquerque, presidente da Comissão Especial da Anistia Wanda Sidou, pondera que o conservadorismo ainda mantinha voz atuante. “A mudança que a pílula anticoncepcional trouxe para o mundo não provocou o mesmo rompimento de paradigmas aqui. Muitas mulheres ainda precisavam casar virgens, e isso permaneceu, era um contexto de muitos controles, a começar na família”, afirma. 

Segundo ele, em capitais do Sudeste havia maior influência dos movimentos europeus, diferentemente do Ceará. “Estive no conjunto residencial da USP (Universidade de São Paulo) e era muito diferente. Voltei com outra cabeça, depois me envolvi com a luta armada. O maio francês ecoava mais em segmentos intelectualizados, mas não chegava na massa. Nosso ‘maio de 1968’ foi fundamentalmente de luta contra a ditadura”, comenta.

No caso dos alunos cearenses, uma das principais pautas era quanto às vagas excedentes. À época, era comum realizar vestibulares anunciando quantidade de vagas superior ao disponível nas universidades. Os estudantes protestaram onde atualmente é o Centro de Humanidades II, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e seguiam até o Centro da Capital. 

Bancários, operários do Porto do Mucuripe, funcionários dos Correios, professores, entre outras categorias também tinham queixas próprias. Conforme conta o historiador Airton de Farias no livro História do Ceará, em 24 de junho de 1968 houve um dos maiores confrontos entre a população e as forças da segurança no Ceará. 
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Entre "bilas" e molotovs

Munidos de paus, pedras e "bilas" (bolinhas de gude), os manifestantes enfrentaram a polícia. Houve tiros, veículos queimados, prédios depredados e pessoas baleadas na Praça do Ferreira.  “Havia também o uso de coquetel molotov. Eles usaram pela primeira vez no Ceará, soltavam com bomba rasga lata. A polícia tinha muito medo porque nunca tinham visto aquilo. Aí vem toda a relação com a guerrilha”, aponta o professor. 

À época, os estudantes passaram a receber aulas de artes marciais e defesa pessoal. Frequentemente se via nos atos bandeiras de Cuba (onde anos antes ocorrera a Revolução Cubana) e do Vietnã (onde ocorria a guerra). Por outro lado, bandeiras norte-americanas eram queimadas.

“Em 1968, há um questionamento da democracia representativa, o que endossa inclusive a opção pelas armas. E isso ocorreu durante toda a década, não só por 1968, apesar de ser o ano que ficou mais famoso”, aponta Airton de Farias. 
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O AI-5 em meio à revolução

Os enfrentamentos fizeram a violência recrudescer nos dois lados. As guerrilhas armadas ganharam força, e a resposta dos militares no País foi um dos mais duros golpes contra a população brasileira: em 13 de dezembro de 1968 é promulgando o Ato Institucional número 5 (AI-5), suspendendo garantias constitucionais aos cidadãos e institucionalizando a tortura. 
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“Militares do grupo mais radical tinham a pretensão de uma ditadura sem vergonha de ser desde 1964, mas quem chega ao poder é o grupo castelista. Nos anos seguintes, a linha dura cresce e Costa e Silva pega os protestos como pretexto para fechar o regime”, conta o historiador. 

Com a implantação do AI-5, tornou-se perigoso fazer qualquer tipo de ato contra o regime no Brasil. Aos que se arriscaram, muitos foram submetidos a longas sessões de tortura, repressão, enquanto outros eram mortos e dados como “desaparecidos”. Conforme o professor e historiador, o movimento estudantil sofreu grande depressão com o decreto assinado por Costa e Silva. Entidades estudantis foram fechadas e só voltam a atuar publicamente no fim da década de 1970. 
 

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A democracia como meta

Ao longo dos anos mais duros do regime militar, a pluralidade de temas perdeu força em prol de algo mais emergente: a liberdade. Inicialmente, os movimentos revolucionários surgiram também com críticas ao regimes democráticos, considerados um jogo de conchavos. “A descoberta da democracia vem depois. No início, zombávamos dela, fomos descobrir seu valor depois”, relembra o ex-preso político. 
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Quando a ditadura começa o processo de reabertura na década de 1970, as mobilizações ressurgem também para além da clandestinidade. “Eles reabrem em outro contexto. A luta não era mais tão revolucionária, é pela redemocratização do País, a esquerda e também a direita mudam muito, começam a valorizar a democracia”, conta Airton de Farias.
 
 
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