Nações de IDH mais baixo aproveitam a policlínica do Rio-2016
08:10 | Ago. 19, 2016
O tornozelo de Jade Barbosa passou por ali. Também o cotovelo de Sarah Menezes e o dente da frente de um boxeador medalhista de ouro. Até Michael Phelps deixou seu registro no pedaço. Mas o que marca a PoliclÃnica da Vila OlÃmpica do Rio-2016 é menos a fofoca celebrativa e mais a visita de milhares de atletas e membros de delegações (quase) anônimos que usam o centro médico para dar um upgrade na saúde, quando a saúde de seus paÃses tem lá suas limitações.
No galpão de 3.500 metros quadrados, que fica entre o restaurante e a academia de ginástica, especialistas de diferentes áreas abrem prontuários digitais a nações cujo atendimento médico muitas vezes nem chegou ao analógico. Â?A gente acaba consultando principalmente as delegações de paÃses com IDH mais baixoÂ?, diz Eduardo Tinoco, ex-jogador de vôlei de praia e professor da UERJ. Â?Os africanos vêm em peso, o pessoal do Leste Europeu, asiáticos, muita gente do Oriente Médio.Â?
Desde a abertura da clÃnica, em 22 de julho, só na parte odontológica foram cerca de 1.600 atendimentos clÃnicos, 600 exames de imagem e 350 protetores bucais, recorde olÃmpico em todas as categorias. Os técnicos cambojanos Kiey Hein e Vichet Thin, o primeiro da natação e o segundo da luta olÃmpica, aproveitaram para fazer limpeza dental. Â?We feel freshÂ?, sorriu timidamente Hein, apontando um dente quebrado que iria para conserto. Já a garota do tae kwon do Aniya Nicol Louissaint, que lutará pelo Haiti, tinha tirado um molde para fazer um protetor bucal.
Esportes como tae kwon do e boxe exigem protetores no kit básico, e era de se presumir que todos os lutadores viessem com os seus. Â?A questão é que muitos desses protetores são comprados em farmácias, e os nossos são customizados, feitos sob medida, recebem uma cor diferente, e aà o atleta usa esse como titular e deixa o que trouxe como reserva.Â? Os protetores são doados pela Oral-B, que patrocina o setor odontológico da PoliclÃnica.
O Brasil tem fama mundial de ter bons dentistas, tanto na parte clÃnica quanto na estética, e isso se espalhou para a Vila OlÃmpico. O promissor boxeador não pensou duas vezes em recorrer a ela depois de quebrar um dente no treino. Banguela no pódio não é exatamente a imagem que gostaria de perpetuar. A coroa foi feita rapidamente, e à noite a equipe da clÃnica comprovou o trabalho exemplar nas fotos para a posteridade. Outro boxeador preferiu aguentar firme a mexer num molar que poderia exigir um remédio. Tinha medo de ser pego no doping. Â?Nenhum medicamento usado pelos dentistas está na lista da WadaÂ?, garante Tinoco, para quem o ideal seria o atleta fazer uma radiografia panorâmica durante a preparação para qualquer evento esportivo - OlimpÃada, nem se fale. Assim, rastrearia eventuais problemas bucais e evitaria, no mÃnimo, noites em claro por causa de uma abscesso inoportuno.
Panorama parecido, de alta procura, vive o setor oftalmológico da PoliclÃnica. Ele soma, até agora, 2.100 atendimentos e 1.700 óculos doados, ante 1.402 e 937, respectivamente, de Londres - fora encaminhamentos para o hospital de casos mais graves, como descolamento de retina, retinopatia diabética e glaucoma agudo. Â?Na maior parte dos paÃses, quem cuida dos olhos é um optometrista, especialista em óculos, e não um oftalmologista, que tem formação médica, como é o caso do BrasilÂ?, explica a oftalmologista Lilian Gomide.
Na PoliclÃnica, que atende das 7h à s 23h, por turno, são três oftalmologistas, dois tecnólogos, dois enfermeiros e uma contatóloga, que ensina a colocar e tirar lentes. Já foram abertas 100 caixas de lentes de contato one day. E a média de idade dos pacientes é de 35, 40 anos, patamar alto se mirarmos nos atletas, mas condizente com a faixa etária de membros da delegação. Â?Atendi um técnico de 60 anos que nunca soube se tinha ou não de usar óculosÂ?, diz Lilian. Ela detectou ceratocone, deficiência na córnea, informação que arregalou os olhos do paciente.
Â?Nessa idade é difÃcil a adaptação a lentes mais rÃgidas, então indiquei óculos que poderiam melhorar uns 30% da visão.Â? A audiência maior, afirma o técnico em oftalmologia Leonardo Pecoraro, é das delegações da Ucrânia, Nigéria, Angola e Camarões. Saem quase todos com pedidos para óculos e lentes, doados pelo H. Olhos, que banca o serviço. Â?Muitos dizem que deixaram os óculos em casa, esqueceram no avião e agora estão sem enxergar direitoÂ?, continua Pecoraro, e sabe-se lá se contam a verdade, relativa naquele momento, mas talvez importante em levantamentos de pesquisa posteriores. Auguste Arani Coffi, do Benin, tira do bolso da calça um papelzinho mostrando que receberia seus acessórios oculares dali a um dia. Na intenção de explicar para que serviam, fez o gesto universal do braço curto, que caracteriza a presbiopia, a tal vista cansada.
MÃmica é um recurso que nem sempre funciona nas consultas. Como explicar a gravidade de um glaucoma para alguém que se acostumou com a perda paulatina da visão? Ã? quando entra em cena a equipe de intérpretes, voluntários, poucos com a experiência de Gabriel de Souza, que se graduou em farmácia na Rússia e se vira nos 30 para atender à demanda de armênios e de membros de paÃses da antiga União Soviética. Â?Numa das consultas, o médico me chamou porque não sabia se o paciente russo estava lendo direito as letras e os números que o projetor lançava na parede.Â? Outra do pronto-socorro da linguagem, a francesa Clémence Bornanan, que já sonhou ser médica e hoje estuda business, traduzia o pedido de check up de uma corredora da Mauritânia. Estava quase apelando para a mÃmica. Sua voz sucumbia sob o forte ar condicionado.
A baixa temperatura é necessária para manter a aparelhagem de última geração nos trinques. No setor de ortopedia, dois aparelhos de ressonância magnética, um raio X e um ultrassom se juntam a nove ultrassons portáteis, os Vscan. Â?Eles cabem no bolso, pesam menos de um quilo e permitem ao médico da delegação saber, no local de prova, se é o caso de encaminhar ou não o atleta para a PoliclÃnica ou mesmo para o Americas Medical City, hospital de referência dos JogosÂ?, explica Daurio Speranzini Jr., presidente da GE Healthcare para a América Latina. A empresa estruturou o local e doou outros equipamentos de imagem ao Hospital Municipal Souza Aguiar (mais informações no boxe). Com essa aparelhagem, a clÃnica chegou aos 1.085 exames de imagem.
O menino dos olhos de Daurio e dos médicos da clÃnica, no entanto, é o EMR (Electronic Medical Records), que registra digital e confiavelmente a saúde dos atletas num único sistema. Â?Ã? possÃvel saber todo o histórico, idade, peso, altura, lesões anteriores, se têm alguma alergiaÂ?, enumera Marcelo PatrÃcio, gerente geral de serviços médicos da Rio-2016.
O EMR teve resultados dourados em Londres e Sochi, em 2014. Nessa última OlimpÃada de Inverno, um esquiador teve lesão medular após uma queda e não conseguia esboçar palavra. Antes de entrar com a medicação, um dos médicos acessou o EMR pelo smartphone e confirmou que o atleta tinha alergia ao tal remédio. Com um sanduÃche globalizado do McDonaldÂ?s em mãos, Eva Villalta, médica do esporte de Honduras, era só elogio à PoliclÃnica. Um de seus atletas de luta olÃmpica teve o ligamento lateral do joelho "desgarrado" e agora fazia sessões de ultra-som, laser e massagem na fisioterapia. Â?No meu paÃs, o sistema público é bom, pero tem carências, por supuesto.Â? A cicatriz que ela exibia no tornozelo vinha de uma queda que quase a tirou da OlimpÃada. Fora cuidada pelo atendimento privado. Em coro, seus pupilos também fizeram limpeza nos dentes. Estão todos fresh.