Música local: tributos com identidade cearense
Interpretar a obra de outro artista também pode ser um exercício de criação. Nos palcos e estúdios, artistas cearenses revisitam e ressignificam nomes consagrados da música brasileira e internacional trazendo suas identidades como diferencial
14:52 | Nov. 17, 2025
No último dia 8 de novembro, 711 pessoas lotaram o Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Já o palco, também lotado, acomodava a banda Cancerianos Sem Lar e a Orquestra de Câmara Heitor Villa-Lobos, que apresentaram um show em homenagem aos 80 anos de Raul Seixas com arranjos inéditos que fundem o rock à música orquestral.
A relação do vocalista, Zéis, com a obra do cantor e compositor baiano começou ainda na infância, em Caucaia, por influência de seu pai. “Meu pai era fã do Raul e tinha o hábito de botar os discos pra tocar. Fui absorvendo o repertório e criando imagens a partir das músicas dele, que são muito existenciais, críticas e lúdicas. Então as músicas dele fizeram parte da minha imaginação da infância”, relembra.
Anos mais tarde, Zéis seguiria uma produtiva carreira artística na música e no teatro. Só em 2025, já lançou o álbum “Encruzilhada”, sexto de sua carreira, e estreou “Gato Preto”, solo teatral em que atua, dirige e produz. Em paralelo, Zéis vem revisitando a obra de Raul desde 2019, quando iniciou o bloco de carnaval Como Raul Já Dizia, que apresenta as canções em ritmos carnavalescos e trazendo referências visuais.
“A gente incorpora máscaras de personagens e elementos que o Raul tem nas músicas dele, como o Diabo, se veste de personagens como o Cowboy Fora da Lei e o Al Capone, levando esses elementos pro palco”, explica.
Relê Raul!
Foi a partir do trabalho desenvolvido no bloco que Zéis recebeu o convite para integrar a banda Cancerianos Sem Lar, há dois anos e meio, que faz releituras da obra de Raul Seixas. “Quando o antigo vocalista saiu, eles queriam alguém que já tivesse uma familiaridade com o repertório. Então eu fiquei nesses dois projetos”, conta.
Para Zéis, o teatro lotado no show com a orquestra demonstra a força do próprio Raul e também da orquestra e da banda, que já atuam na cidade há bastante tempo e ensaiaram por dois meses para conceber o show. “A galera já tá pedindo pra ter um novo. Mas é um show que demanda bastante pra fazer acontecer”, explica o vocalista da Cancerianos, que realiza uma média de cinco a sete shows por mês em Fortaleza e, eventualmente, no interior.
“Já tocamos até num festival de reggae em Quixadá, com a Tribo de Jah. Foi bem inusitado, porque éramos a única banda que não era de reggae. Mas também já teve festival de tributo ao Raul, só com bandas que tocavam Raul Seixas, em Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte. É incrível como o Raul tem público em todo lugar”.
Madonna electro punk
A cantora norte-americana Madonna é outro exemplo de artista com público em todo lugar, inclusive no Crato dos anos 1990. Foi ali que Daniel Peixoto, ainda criança, viu nela uma forte referência artística. “Numa era pré-internet, nós tínhamos o rádio. Ela era uma das poucas unanimidades na época, me conectei com ela desde muito novo”, lembra o cantor, que anos depois levaria essa admiração para o palco com o espetáculo “The Immaculate Tribute”, criado em 2018, ano em que a artista completou 60 anos.
Daniel se tornou conhecido inicialmente por seu trabalho na icônica banda de electro rock Montage, formada por ele e Leco Jucá em 2005 e que está comemorando 20 anos com shows e gravando um novo álbum. Com 9 álbuns lançados entre o Montage e sua carreira solo, o artista já se apresentou em palcos no Brasil e no exterior, recebeu premiações e esteve em trilha sonora de novelas globais.
O tributo apresenta a obra de Madonna influenciada pelo electro punk, coerente com a identidade sonora que marca os trabalhos de Daniel. Para tal, ele trabalhou com 7 músicos no palco. Ele, DJ, baixo, bateria, guitarra e dois backing vocals fizeram os arranjos do show pensados para essa instrumentação. “Tentamos preservar os acordes e melodias, mas sonoramente ficou mais pesado do que o que ela apresenta ao vivo, e a ideia era essa mesmo. Tanto que ao longo do processo fomos tirando as baladas, pois elas estavam destoando”, conta.
Juntamente com Getúlio Abelha, Daniel chegou a lançar uma versão da faixa “La Isla Bonita”, a única que inclui tanto em seus shows solo quanto no tributo. “Procuramos manter a vibe latina da versão original, mas deixar mais eletrônica. Para produzir, chamamos o DJ Chernobyl, que é um mestre nisso. Essa é a música da Madonna favorita do Getúlio e, na época, a minha também. Mas eu vou mudando isso com o passar do tempo”, brinca.
O cantor considera o show que realizou este ano na Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de São Paulo um dos mais especiais deste projeto. “A multidão e a energia que mistura festa e militância torna algo sempre especial”, relata. Também destaca os shows realizados na Semana Internacional de Música de São Paulo em 2023 e no circuito de unidades do Sesc pelo interior de São Paulo.
Padroeira da Liberdade
Já a cantora e compositora de ascendência nipo-nordestina Regina Kinjo encontrou em Rita Lee uma profunda identificação. “A vida e obra dela foram tão impactantes pra mim que me permiti um mergulho em mim mesma usando sua música como ferramenta. Esse tributo não foi apenas uma homenagem a ela (diga-se de passagem, quando estava viva), foi também um processo de autodescoberta”, relata.
Em “Rita Lee: Todas as Mulheres do Mundo”, espetáculo que estreou em 2023, Regina presta tributo a Rita com um olhar cênico e pessoal. O show tem a proposta de reunir canções censuradas durante a ditadura militar. “O que realmente me encantou foi a postura dela: cantar o que cantava durante a ditadura, uma ávida defensora das mulheres e, como ela mesmo dizia, ‘a padroeira da liberdade’”.
Regina iniciou sua carreira em 2019. Em seu show mais recente, “Regina Kinjo – Sertão Oriente”, música e intervenções cênicas conectam as duas culturas que fazem parte do DNA da artista: a nordestina e a japonesa. Desde 2024, o espetáculo vem sendo apresentado em palcos como o Cineteatro São Luiz, o Centro Cultural Banco do Nordeste e a Casa Absurda. Já o álbum “Sertão Oriente” foi lançado em 2025.
Voltando ao tributo, ele proporcionou a Regina a oportunidade de viajar para cantar, com apresentações em Fortaleza, Sobral e São Paulo. “Lotar casas com todo mundo cantando e perceber que na plateia havia pessoas de várias idades foi o que mais me marcou”, conta. Para montar o show, Regina leu duas biografias e até mesmo trabalhos científicos, além de ouvir e se familiarizar com todas as músicas. “Foi um longo processo de pesquisa. Tudo isso mudou o meu mundo”.
Assim como Zéis e Daniel, Regina faz releituras em seu tributo, fazendo de sua própria assinatura sonora um prisma para a interpretação das músicas. “Sempre trago leituras minhas das músicas dela. Me imprimo nessas versões de forma muito autêntica, inclusive visual e cenicamente também. As músicas são de Rita Lee, mas o show é de Regina Kinjo”, ressalta.
Entre o tributo e o autoral
Para artistas com carreira e músicas próprias, sejam iniciantes ou consolidados, tributos podem ser ferramentas poderosas para expandir as possibilidades de expressão e contato com o público. Porém, os modos de conciliar os diferentes trabalhos podem variar bastante, dependendo dos objetivos.
Para Zéis, cada frente em que atua se retroalimenta das demais: “Eu tenho esse tributo, sou ator, estreei dois espetáculos e lancei um álbum esse ano, tenho trabalhos para o audiovisual, compondo trilha. Acho que todos esses trabalhos contribuem para mim enquanto artista. Às vezes um público que me conhece por um trabalho acaba indo conhecer o outro. Já fiz peça com gente na plateia usando a camisa do meu show. Gosto muito dessa diversidade do que eu faço. Não me enxergo fazendo uma coisa só”.
Já Daniel Peixoto prefere dedicar tempo e foco específicos a cada projeto: “Quando me dedico a um projeto, tento permanecer nele por um tempo, para não confundir o público. Gosto de me concentrar numa coisa só e fazer bem feito. O tributo está pronto e ensaiado. Quando convidam, a gente tira da gaveta e faz, como foi ano passado quando a Madonna esteve no Brasil”, explica Daniel, que atualmente está concentrado nas gravações do próximo álbum do Montage.
Regina vê o diálogo entre o tributo e sua obra autoral como algo natural: “O tributo dialoga bastante com meu projeto autoral. Eu trouxe ela pro meu mundo, não é difícil conciliar porque em todos os shows eu me mostro como sou. Inclusive, a autenticidade dela me ajudou a ter também essa postura”, observa.
Sobre o projeto
O “Cultura em Movimento: Ceará que cria, celebra e contagia” é um projeto do Grupo de Comunicação O POVO com apoio do Governo do Ceará. A proposta é fortalecer o ecossistema cultural e estimular sentimento de pertença do povo cearense. Nesta edição, o projeto passeou, de forma multifacetada, por produções culturais em quatro linguagens artísticas, a saber: audiovisual, arte popular, artes plásticas e música.
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