Jovem de 24 anos é o primeiro quilombola a se formar em Medicina no Ceará
Natural de Caucaia, o jovem Diogo Augusto conta ao O POVO sua trajetória nos estudos e a grande conquista de ser o primeiro médico quilombola do Ceará
17:08 | Dez. 28, 2025
Nascido na comunidade quilombola da Serra da Rajada, na zona rural do município de Caucaia, o jovem Diogo Augusto Araújo é o primeiro médico quilombola do Ceará, formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Caucaia é o município com maior número de pessoas declaradas quilombolas no Estado.
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Primeiro médico quilombola do Ceará relembra trajetória nos estudos
O rapaz de 24 anos é filho de dona Sandra, primeira professora na escola quilombola da região, e do “Zé Augusto”, agricultor também quilombola. “Desde cedo minha mãe incentivou a mim e meus dois irmãos, um pouco à revelia da vontade de meu pai, que queria que nós trabalhássemos", conta Diogo.
Ele perdeu o pai muito novo, aos 4 anos e 6 meses de idade. O homem, que tinha apenas 42 anos, teve uma parada cardiorrespiratória.
“Infelizmente é comum a ausência de assistência à saúde da população quilombola. Pouco tempo depois do falecimento, quando eu tinha 5 anos, nos mudamos eu, minha mãe e meus dois irmãos para o Parque Potira — onde moro até hoje".
Segundo Diogo, mesmo após ter saído do quilombo muito cedo, continuava indo visitar a família, especialmente o avô, ancestral da região que faleceu aos 101 anos de idade em 2024.
A mãe, a quem os alunos apelidaram carinhosamente de “tia Sandra”, nunca deixou faltar nada para os três filhos.
“Minha irmã se graduou em Letras-Espanhol pela Uece, meu irmão é graduado em Direito e cursa o quarto semestre de Medicina, sendo eles também grandes inspirações nos estudos”, conta orgulhoso.
Aos 7 anos, Diogo foi estudar na Fundação Bradesco, uma escola filantrópica do Banco Bradesco destinada a estudantes de baixa renda. “Lá, me destacava por tirar boas notas e tinha como grande meta conseguir um emprego como bancário, que por vezes o banco ofertava para alunos com grande destaque”, explica.
Também estudou no (IFCE) de Caucaia, onde realizou olimpíadas científicas e pesquisas. Diogo também participou do núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas.
“Em 2019, saí do IFCE e fui para a Escola Estadual Cesar Cals, onde concluí o terceiro ano do ensino médio e me dediquei ao Enem, obtendo a aprovação para ingressar em 2020 no curso de Medicina da UFC”, relembra ele.
“Busquei reafirmar minha identidade”, conta médico quilombola
Questionado se o contexto social ao qual viveu impactou sua jornada acadêmica, Diogo revela que “sempre se indignou com a injustiça social” que o atravessava.
“Diante disso, busquei reafirmar minha identidade enquanto quilombola, mas é um processo difícil, pois as pessoas deslegitimam a nossa identidade. Até pessoas próximas já chegaram a zombar, ouvi falar que eu 'era bonito pra ser quilombola', por ter traços considerados mais ‘finos’”, diz.
Por conta disso, o médico conta que se engajou no movimento estudantil do IFCE e depois ao Centro Acadêmico XII de Maio, do curso de Medicina. “[Essas] instituições que me fizeram aprender muito e que, sem elas, possivelmente não estaria onde estou hoje", declara.
“A possibilidade de fazer medicina foi um horizonte ampliado apenas quase no fim do ensino médio (...) A verdade é que, pra mim, a Medicina nunca foi um grande sonho ou uma missão humanitária. Mas era, sim, uma grande ferramenta para ajudar a população quilombola e, claro, de ascensão social para a minha família".
Atualmente, Diogo é membro do Grupo de Trabalho Graça Epifanio de saúde quilombola, do Ministério da Saúde (MS).
“Eu fui uma criança beneficiária do bolsa família. As políticas públicas de inclusão me salvaram. Fui bolsista de iniciação científica jr no IFCE. Entrei como cotista negro na Universidade. O restaurante universitário garantiu segurança alimentar (...) Contudo, é preciso também denunciar”.
Ele conta que ao longo dos anos, os alunos têm sofrido com cortes na assistência estudantil. “Foram muitos os atrasos de bolsa, especialmente nos anos de 2021 e 2022. São muitos os colegas que precisam conciliar estudo e trabalho, porque a política é subfinanciada”, afirma.
Apesar das dificuldades, Diogo celebra o feito: “Essa conquista significa a coroação de anos de estudo e dedicação, minha e da minha família. É um grande alívio. (...) Confesso que, ao longo da vida, tive dificuldades de comemorar conquistas, porque muitas vezes pensava “estou apenas cumprindo com minha obrigação” Hoje estou comemorando imensamente, pois sei que não é uma conquista individual, mas sim coletiva”, conta orgulhoso.
Após 77 anos de sua criação, a faculdade de Medicina da UFC vê o primeiro remanescente quilombola a se formar na graduação. Diogo Augusto afirma que isso é fruto de uma “aristocracia médica, que é branca, elitista e formada por famílias tradicionais”.
“Não à toa, grande parte dos médicos são contra as cotas na residência médica e contra as políticas de inclusão. Somente em 2024 a UFC começou a reservar vagas para quilombolas, por força da lei de cotas de 2023, que finalmente incluiu a população quilombola nas reservas de vagas. Eu mesmo, apesar de quilombola, adentrei nas cotas em 2020 como pessoa negra e não como quilombola, pois à época não existia essa reserva”, explicou.
Ele continua: “É uma felicidade eu ser o primeiro quilombola médico no Ceará? Sim, é. Porém, é sobretudo uma indignação. É revoltante que tantos familiares meus, amigos, não tenham essa mesma oportunidade, porque precisam trabalhar desde cedo e não tem tempo para estudar", lamenta Diogo.
“Somos pouquíssimos médicos quilombolas no País, no Ceará apenas eu. Isso é uma violência tremenda. Apesar disso, vamos lutando e seguindo em frente, para que muitos outros possam adentrar a universidade”, finalizou. (Colaborou Rubens Rodrigues)