Famílias nativas temem perder suas casas na comunidade da Prainha do Canto Verde, em Beberibe

Um estrangeiro reivindica a posse de terreno no local e ação tramita na Justiça. Defensor público argumenta que comunidade não foi ouvida no processo

14:37 | Ago. 25, 2020

A família do professor José Maria Costa Ferreira, 42, é uma das três que corre risco de despejo. Da esquerda para direita: Sara (11), Júlia (45), José Maria (42) e Débora (um ano e sete meses). (foto: Via WhatsApp O POVO)

Três famílias da comunidade da Prainha do Canto Verde, no município de Beberibe, Litoral Leste do Estado, correm risco de perder as terras onde moram. A situação acontece após um estrangeiro reivindicar a posse de um dos terrenos do local, de cerca de 700 metros quadros. De acordo com moradores da comunidade, ele alega ter comprado a propriedade de um nativo que já não morava mais no local.

O professor José Maria Costa Ferreira, 42, vive em uma das casas com risco de despejo. Ele mora na comunidade desde quando nasceu e relata que durante juventude começou a tomar ciência da luta pelo direito à terra. Hoje, ele mora no local com sua esposa e duas filhas: Sara, de 11 anos, e Débora, de um ano e sete meses. “Durante esse tempo todo estamos sofrendo embates com grandes imobiliárias. Quando a gente pensa que os problemas terminaram, eu acabo virando a nova vítima”, lamenta o homem.

Conhecido na comunidade como Dedé, o docente conta que a notícia da possível perda de sua terra chegou de repente, quando, em 2019, uma autoridade apareceu em sua casa solicitando que ele assinasse um termo para reintegração de posse. A decisão foi tomada após análise do caso por juiz da Comarca de Beberibe.

“Nessa época, minha filha mais nova era recém-nascida, tinha poucos dias de vida. É muito estranho a gente viver nessa situação em que o nativo tem que ser desapropriado. Esse é nosso lugar, aqui a gente constrói toda nossa vida”, argumenta.

Diante desse episódio, no entanto, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela administração da comunidade, entrou judicialmente no caso e impediu que a reintegração de posse continuasse. Desde 2009, a comunidade é considerada Reserva Extrativista (Resex) e deve ser preservada.

Essa determinação, de acordo com texto publicado no Diário Oficial da União, tem objetivo de “proteger os meios de vida, a cultura e garantir a utilização e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população extrativista da comunidade da Prainha do Canto Verde”.

Impedimento da reintegração de posse foi considerado nulo e segue preocupando moradores

Mais de um ano após a ação que impediu a ação de reintegração de posse, o Tribunal Regional Federal (TRF-5) considerou nula a intervenção do ICMBio. A justificativa do Judiciário é que o processo aconteceu com interesse entre duas pessoas particulares, apesar de as unidades de conservação serem consideradas bens públicos, segundo a lei 9.985/2000.

José Alberto de Lima Ribeiro, pescador e líder comunitário da comunidade, disse que, a partir dessa decisão do tribunal federal, a apreensão por um novo mandato de reintegração voltou a acompanhar a vida dos moradores. Eles seguem em contato contínuo com órgãos de defesa dos direitos humanos, como a Ordem dos Advogados do Ceará (OAB-CE), para que a situação seja revertida.

“A perda do território para a especulação imobiliária traz prejuízos gigantescos para comunidade, colocando em risco nosso modo de vida. Muitas pessoas dizem que isso vai trazer o progresso. Mas, baseado na experiência de outros cantos, a gente vê que na verdade traz pobreza, desigualdade social…”, pondera o homem.

Assista a programa sobre a Prainha do Canto Verde, produzido pela TV Cultura:

O defensor público federal Fernando Holanda argumenta que a retirada dos moradores nativos abriria espaço para um processo de gentrificação, no qual a comunidade local ficaria em segundo plano ou seria até mesmo expulsa diante da exploração de interesses turísticos. Ele lembrou que a existência de uma comunidade extrativista naquele local é um fator de interesse público, visto que é uma forma de conservar os recursos naturais existentes.

Ele ponderou ainda que a população nativa ainda não foi ouvida pela Justiça, devido a seu modo de vida mais tradicional, ligado à oralidade. “O Judiciário acaba sendo induzido ao erro por conta dessa burocracia, que acaba sendo indissociável da atividade. A comunidade fica sem poder provar sua tradicionalidade e depende de intermédio de outros instituições”, enfatizou o defensor, ressaltando que a Defensoria Pública da União (DPU) vai dialogar com a população para buscar saídas para o problema.

O POVO entrou em contato com o ICMBio, mas não foi respondido até a publicação desta matéria.

Sobre a Reserva Extrativista Prainha do Canto Verde

Situada no município de Beberibe, no Litoral Leste do Estado, a Reserva Extrativista (Resex) Prainha do Canto Verde foi criada em 2009 e tem área aproximada de 29,8 mil hectares. Habitada por cerca de 400 famílias com modo de vida baseado no extrativismo, o território tem objetivo de proteger os recursos ambientais existentes, garantindo o uso e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados.

Com a criação da Resex, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) passou a ser responsável pela administração do território e fica “autorizado a promover e executar as desapropriações” que sejam necessárias para conservação ambiental.