Paraíso dos pancinhas: o "rock n' roll" que salva jumentos vítimas do estigma
Lar dos Pancinhas abriga 84 animais de grande porte, sendo 77 jumentos, três burros e quatro cavalos, que chegaram com sinais dos mais diversos tipos de machucados
08:00 | Dez. 28, 2025
Em uma região isolada no Aquiraz, a 26,97 km de Fortaleza, um sítio de porteira branca parece ser só mais dos muitos existentes naquela área. No entanto, basta atravessar o portão de madeira para ser recebido com sons de zurros (característico de jumentos) e barulho de cascos batendo contra o chão de terra.
Lá vivem 84 animais de grande porte, sendo 77 jumentos, três burros e quatro cavalos, que chegaram com sinais dos mais diversos tipos de machucados. Chamado de "Lar dos Pancinhas" (@lardospancinhas), em razão das panças magras dos bichos quando chegam, o local é uma lembrança de que a violência pode atingir todas as espécies, acolhendo atualmente também gatos e cachorros.
Érica de Caria, 49, é a responsável pelo espaço. Natural de São Paulo, por volta de 2020 a protetora vivia em Amontada, interior do Ceará, quando viu uma jumenta rasgar "desesperada" um saco de lixo, com fome. Ali se deparou com uma realidade que nunca mais saiu da sua cabeça. Foi um chamado sem volta.
Ela passou a alimentar a jumenta e, com isso, outros animais do tipo foram chegando em sua casa, querendo a mesma sorte. O seu marido na época, com quem tinha uma pousada, se incomodou com eles e Érica optou por se separar do companheiro. Foi atrás de ajuda e conseguiu alugar um sítio na região.
Um dos primeiros jumentos que resgatou batizou de "Supla", em homenagem ao cantor brasileiro. "É porque eu sou do "rock and roll", explica. Mesmo sendo uma brincadeira, no dia a dia ela já mostrou possuir a autenticidade e a coragem que costumam estar ligadas a essa expressão.
Lá mesmo em Amontada, por exemplo, chegou a denunciar muitos casos de zoofilia (sexo com animais) cometidos contra os jumentos que resgatava. Ela conta que fez mais de dez Boletins de Ocorrência (BO), mas não tinha ajuda. Chegou a sair correndo de sua casa em busca dos criminosos, arriscando a vida.
Há alguns meses ela conseguiu se mudar para o sítio que reside hoje, em Aquiraz, e foi virando uma referência na área, a ponto de resgatar animais até de outros estados. Sabe o nome de todos e dá apelidos para cada um. Como uma mãe, reconhece os filhos pelos detalhes, uma mancha que seja, e sabe decorado as distintas personalidades. Briga quando precisa, mas também faz "voz doce", abraça e dispara beijos.
Com a blusa coberta de pelos, resultado dos abraços nas crias, ela conta a história dos jumentos, que são a maioria ali. Tereza, por exemplo, tem trinta anos e em todos eles foi colocada para puxar carroça. Chegou no abrigo sem conseguir ficar em pé, com feridas abertas no corpo, e atualmente recebe cuidados.
Conceição, de quatro anos, é uma jumenta de pelagem loira chamativa que caminha sem uma das patas, amputada após ter levado uma machada de um agricultor. Já sua "irmã" Madona, com nome de diva pop, levou uma paulada no olho de um pastor que se incomodou com sua presença. José, que há menos de um mês chegou no abrigo, também foi agredido na rua e tem atualmente uma das patas enfaixadas.
Violência gerou desconfiança. Muitos são dóceis, se aproximam para receber carinho, mas alguns ainda temem sofrer de novo, não conseguem olhar nos olhos. Esse medo fez Érica levar vários coices, um deles quebrando seis de seus dentes, mas segue com a missão de fazer os filhos voltarem a se sentir seguros.
"Eu salvo os jumentos, mas eles também me salvam todos os dias, não tenho família no Ceará (...) Sou completamente isolada (...) Eles são meus amigos, minha família, meus filhos. E eu sempre falo que enquanto eu puder eu vou lutar com eles porque eles são muito escravizados pela sociedade, (...) As pessoas veem eles sempre no trabalho bruto, então acham que não sentem dor, não tem sentimento, e todos os animais são seres sensíveis a tudo, a dor, a saudade, ao apego emocional", diz.
O amor pelos "filhos", contudo, esbarra somente na dificuldade financeira. Érica conta que sobrevive da ajuda civil, faz rifa, mas enfrenta resistência pelo estigma por trás da palavra "jumento", nome que carrega um sentido pejorativo de "estúpido", "burro". "É difícil algum político ou figura pública querer nas redes sociais assumir que ajuda os jumentos, por causa da brincadeira, da piada de mau gosto", diz.
Como denunciar crimes de maus-tratos animais
Denúncias de crimes de maus-tratos a animais podem ser feitas na DPMA, especializada que fica na R. Professor Guilhon, 606, em Fortaleza. Também podem ser direcionadas para o telefone da delegacia: (85) 3247-2637, ou pelo e-mail dpma@policiacivil.ce.gov.br.
Os Boletins de Ocorrência (BO) podem ser feitos em qualquer delegacia distrital ou por meio da Delegacia Eletrônica (Deletron), no site www.delegaciaeletronica.ce.gov.br, em qualquer horário do dia ou da noite.
Queixas também podem ser encaminhadas para o WhatsApp da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), no número (85) 3101-0181, pelo qual podem ser enviados áudios, vídeos, fotografias e documentos, ou pelo número 181, o Disque-Denúncia da pasta. Em caso de urgência, o fato pode ser noticiado pelo telefone 190.