De garçom em Aquiraz à ONU: a luta de um jovem do Ceará contra o trabalho infantil
A história de Felipe Caetano com o trabalho infantil passa por uma barraca de praia no Aquiraz, atravessa o salão da Assembleia Geral das Nações Unidas e está longe de terminar
08:00 | Jul. 12, 2025
Sob o sol ardente do Ceará, em uma barraca à beira-mar, garçons e correm de um lado para o outro atendendo as famílias que foram à praia no fim de semana. As mesmas cenas de qualquer sábado: pais gritam ao mar para chamar os filhos, avisar que a batata chegou, garçons levam peixes fritos com baião para as mesas e, aos 8 anos, uma criança retira e limpa o que foi deixado, abrindo espaço para novos clientes.
“Uma chaga social secular”. É assim que Felipe Caetano, 23, se refere à realidade do trabalho infantil, que ele mesmo conhece intimamente. Cearense do município de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, ele começou a trabalhar como garçom aos 8 anos, em uma barraca de praia.
Entre os 8 e os 14, também foi catador de latinhas e trabalhou com aluguel de pranchas de surf e bodyboard na praia. "Todo sábado, domingo e feriado eu estava nas barracas de praia porque eu tinha a obrigação de levar alguma coisa para dentro de casa", relata.
Filho mais velho de uma família empobrecida, sua história com o trabalho precoce é um legado que carrega no sangue. Sua mãe, Fabiana, também foi vítima: começou cedo como trabalhadora doméstica. Seus avós, da mesma forma, assim como boa parte das crianças da comunidade da Prainha, onde Felipe cresceu.
Vítima do trabalho infantil cursa Direito na UFC e luta para que outros jovens não passem pelo mesmo
Caetano contou sua história ao O POVO uma semana após o lançamento de seu livro, uma versão expandida da monografia que ele apresentou ao curso de Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC).
A pesquisa conversa com a sua história: “O trabalho infantil na jurisprudência dos tribunais superiores”. O título foi publicado pela editora Lacier. Mas a graduação em Direito é somente mais um capítulo da militância pelo direito das crianças.
Quando estava na 8ª série do fundamental, Felipe participou de uma oficina do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em parceria com a Prefeitura de Aquiraz. Lá, teve contato com o Núcleo de Cidadania dos Adolescentes (Nuca), em que adolescentes promovem discussões sobre temas como saúde sexual, meio ambiente, direito à cidade, educação, participação política, etc.
Além de realizar as discussões entre si, o grupo tenta alcançar outros jovens do município, como lembra Caetano: "Quando eu participava do Nuca, eu já me reconhecia como um defensor dos direitos das crianças".
Foi em uma dessas oficinas que algo mudou em sua cabeça. Durante alguns meses, ele discutia direitos dos adolescente durante a semana e trabalhava na praia no tempo livre. Isso aconteceu até que ele foi apresentado a Antônio de Oliveira, um procurador federal do Trabalho que participou de uma das oficinas do Núcleo.
"Foi explicado para gente o que era o trabalho infantil, os prejuízos que causava na vida da criança e do adolescente, e naquele momento eu disse: 'Eu tô em situação de trabalho infantil", diz sobre o dia em que percebeu sua condição. "Eu tô aqui falando sobre outros direitos das crianças, mas eu tô com os meus próprios direitos sendo violados".
Foi partir desse momento que o jovem cearense deu início ao que chama de "autolibertação" na própria casa. Depois desse dia, anunciou à família sua decisão: deixar de trabalhar para se dedicar integralmente aos estudos.
Os anos seguintes envolveram diferentes conflitos na própria casa e na comunidade. Alerta sobre sua condição, Felipe se lançou cada vez mais na militância contra o trabalho precoce, ajudando a expandir projetos como o Programa de Educação Contra a Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Rede Peteca).
Aos poucos, foi enfrentando a ideia de que o trabalho infantil deveria ser parte natural da vida na Prainha, uma criança por vez.
Quando o cumim chega ao ensino superior
Após sair da realidade do trabalho infantil e passar anos na militância pelo direito das crianças, Caetano chega aos portões da Faculdade de Direito da UFC.
“A síndrome do impostor foi a coisa que mais me acompanhou durante a graduação. Logo nos primeiros dias, eu pensei: 'meu Deus, eu não mereço estar aqui'”, relata.
Enquanto estudante, Felipe continuou morando na Prainha. Usava o serviço de ônibus da Prefeitura para transporte de Universitários, passando horas entre idas e vindas todos os dias para assistir às aulas. Foi nesse tempo em que sua família construiu uma nova compreensão sobre o trabalho infantil, vendo os espaços que o jovem alcançava na militância e na universidade.
Os sonhos não tinham espaço em meio à dura realidade em que Felipe nasceu. “Minha família como um todo começa a perceber que eu poderia ir muito além do que eles já tinham sonhado para mim, porque nunca eles tinham me sonhado médico. Nunca eles tinham me sonhado advogado, juiz, engenheiro, nunca tinham me sonhado nada”.
A partir das conquistas universitárias e do reconhecimento social de sua trajetória, Felipe conseguiu transformar a maneira como sua família enxergava a educação formal. Ele conta que foi nesse contexto que sua mãe passou a compreender que sua decisão de deixar o trabalho infantil — e o conflito familiar que isso gerou — “tinha uma razão”.
"Minhas irmãs não vão encostar a barriga no fogão numa barraca de praia, eu não vou deixar que as minhas irmãs passem por tudo que passei”, reitera, falando sobre as irmãs que atualmente têm 18 e 12 anos.
Desde então, Felipe foi conselheiro da Unicef no Brasil, cofundador do Comitê Nacional de adolescentes na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Conapeti), discursou sobre o direito das crianças na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), participou de palestras junto ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) e muito mais.
Atualmente, ele é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), mas ainda não está satisfeito: Felipe sonha em se tornar procurador do trabalho, para ajudar outras crianças que vivem o que ele sentiu naquela barraca de praia.
Em cinco anos na UFC, o estudante impulsionou a discussão sobre trabalho infantil entre seus colegas, mas a disparidade social que encontrou foi, por inúmeras vezes, um desafio.
“Lembro de uma intervenção que fiz falando de trabalho infantil, a colega olhou para mim e disse: 'Meu Deus, ainda existe trabalho infantil em 2021?' Eu respondi: ‘Fulana, desce a escada que aqui na frente tem três crianças dormindo na calçada da Faculdade de Direito", conta.
A jurisprudência sobre trabalho infantil
Sua pesquisa de conclusão de curso é sobre acerca do trabalho infantil nos tribunais superiores, em que pesquisou três Cortes: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre questões previdenciárias, o Supremo Tribunal Federal, sobre questões constitucionais, e o Tribunal Superior do Trabalho (TST), sobre as próprias relações trabalhistas.
Sobre a conclusão, ele resume: “(As Cortes) estão alinhadas em entender que apesar da proibição constitucional do trabalho infantil, a proibição não pode ser analisada, vista, interpretada de forma que prejudique as crianças e os adolescentes”. Isso significa que apesar de todo trabalho infantil ser ilegal, as crianças expostas a essa condição possuem direitos trabalhistas, por exemplo.
Caetano explica que, na prática, isso funciona de diferentes formas: uma criança que, como ele, trabalhou ilegalmente entre os 8 e os 14 anos, pode usar esses 6 anos para o seu tempo de contribuição para aposentadoria, segundo entendimento do STJ.
Em outro julgamento, o STF decidiu que adolescentes em situação de trabalho infantil tem direito a licença maternidade.
“São formas que o Direito encontra de atenuar a violação já sofrida. Porque quando você tá na situação de trabalho infantil, a principal coisa que você perde, é o tempo da infância [...] então, o que o Direito encontra como forma de reparação é justamente dizer: 'Olha, não tem como a gente te devolver o tempo que tu perdeu, o tempo que tu foi explorado, mas tem como a gente reparar e atenuar isso”, conclui.
O prefácio do livro é assinado pela ministra cearense Kátia Magalhães Arruda, do TST. No texto, a magistrada, que esteve na banca de Felipe, escreve: "Para todos que lutam pela dignidade da infância e pelo fim do trabalho infantil, saber que essa luta dá frutos, se reproduz na juventude é muito gratificante, pois se constrói uma nova geração que não está disposta a aceitar esse tipo de exploração".
O Trabalho Infantil na Jurisprudência dos Tribunais Superiores
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