Na periferia, insegurança alimentar aumenta a vulnerabilidade de mães e crianças

Durante entrega de alimentos realizada pela Central Única das Favelas, mulheres relataram ao O POVO o impacto da dificuldade financeira na alimentação durante a pandemia. Crianças que passam fome, além de estarem sujeitas a doenças, têm desenvolvimento cognitivo prejudicado

20:03 | Jul. 09, 2021

O Barroso é um dos bairros com o menor índice de desenvolvimento humano (IDH) na Capital. Na foto, voluntários da Cufa distribuem alimentos (foto: JÚLIO CAESAR)

A rotina alimentar na casa de Renata Elias, 38, moradora do bairro Barroso, mudou significativamente neste ano. As compras de frutas e verduras, que eram rotineiras, tiveram que entrar no corte de gastos da casa. Desempregada, ela conta que o salário do marido, funcionário de uma churrascaria no bairro, foi reduzido no ano passado. Junto ao salário do marido, a outra fonte de renda da casa é o auxílio emergencial no valor de R$ 375.

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Durante uma ação do programa Mães da Favela, da Central Única das Favelas (Cufa), no Barroso, Renata compartilhou a preocupação com a alimentação do filho. "A criança quer comer, você vai deixar seu filho esperando?", questionou. O lanche da criança agora tem sido pão com ovo, pois é o que cabe no orçamento. A carne vermelha também virou artigo de luxo para a família. “É mortadela, ovo e peixe que sai mais barato. Carne não está dando pra comprar direto." De acordo com levantamento divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em março, desde o início da pandemia, o preço dos alimentos subiu 15% no País, quase o triplo da taxa oficial de inflação do período, que ficou em 5,20%.

Localizado na secretaria regional (SER) IV, o Barroso é um dos bairros com o menor índice de desenvolvimento humano (IDH) na Capital. O bairro possui um dos 13 IDHs mais baixos do município, com taxa de 0,187. A nível de comparação, o melhor IDH de Fortaleza é o do bairro Meireles, de 0,953, segundo dados de 2019 do anuário do Ceará.

Naquela manhã, foram distribuídos mais de 100 fardos de macarrão. Na medida em que a distribuição acontecia, mais pessoas entravam na fila para a retirada do alimento. A chefe de família Antonia Silva de Oliveira, 65, era uma das pessoas que estava logo no começo da fila. O benefício que ela recebe, no valor de R$ 800, é o que paga aluguel, energia, água e alimento para ela, o marido, duas filhas e uma neta, que acabou de completar 18 anos. As filhas tiveram o auxílio emergencial negado este ano, e o macarrão doado naquela manhã foi para a panela do almoço horas depois.

A insegurança alimentar grave ocorre quando não há alimentos para todos os residentes, incluindo crianças e adolescentes. E é nesse nível que a fome pode tornar-se realidade. Wilton Ferreira, coordenador da Cufa no Ceará, diz que a demanda por cestas básicas em 2021 é maior do que no ano passado. “Aqui nas favelas a gente tem o ‘se vira’, que são os pequenos empreendedores que fecharam os negócios. As mulheres foram para a fila do desemprego, são mães com três, quatro filhos, e a fome bate na porta. O maior público são as mulheres mesmo, tanto para a distribuição de cestas básicas como para cesta em cartões vale-alimentação”, contextualiza.

Renata lamenta também a situação de amigas que se encontram em situação de insegurança alimentar grave, quando falta comida na mesa. “Tem tantas amigas minhas daqui, pessoas que eu conhecia, trabalhavam e viviam bem, e hoje estão só pela misericórdia”, comentou.

Uma pesquisa realizada pelo grupo Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, mostrou que a maior parte dos domicílios que sofrem com insegurança alimentar grave estão localizados nas regiões Norte e Nordeste. Entre os mais afetados pelos efeitos da pandemia na alimentação, o valor da insegurança alimentar grave é superior nos domicílios cujos responsáveis não são da raça ou cor branca (18,0%).

“Eu peguei um frango aqui uma vez (em outra ação da Cufa no bairro), dividi pra mim e pra minha mãe, e deu dois dias", lembrou Renata Elias. A divulgação das ações da Central na periferia é feita em grupos no WhatsApp. A partir disso, essas mulheres repassam no boca a boca para familiares e conhecidas. Foi o caso de Naiara Rodrigues, 29, que chegou lá depois de ser avisada pela irmã. “Quem tem família grande, com filhos, necessita de muitas coisas e não tem como comprar, seja pelo desemprego ou pelo custo do alimento",  disse Naiana, explicando que o dinheiro que recebe só tem dado para comprar o "grosso”, frutas e verduras têm ficado de fora da alimentação.

De acordo com Wilton Ferreira, no primeiro semestre de 2021, foram distribuídos pela Cufa Ceará 40 mil cestas básicas, 6 mil máscaras e 2 mil cartões digitais, um vale-alimentação distribuído no programa Mães da Favela. 

12%

Dos domicílios com residentes com menos de 18 anos na Grande Fortaleza estão em situação de insegurança alimentar grave, de acordo com dados da Pesquisa Regional por Amostra de Domicílios (Prad) do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) divulgados em janeiro deste ano.

Impactos da insegurança alimentar em mães e crianças

A doutora em pediatria pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Nutrologia pela Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), Virna da Costa e Silva, aponta que a insegurança alimentar agrava a vulnerabilidade dessas crianças e mães no contexto nutricional e imunológico, além de trazer prejuízos no desenvolvimento global e psicológico, o que se torna uma agravante de risco para essas famílias diante do contexto epidêmico. 

Em relação aos prejuízos que podem acometer as crianças, que antes tinham acesso a uma alimentação mais equilibrada na escola, alguns pontos importantes podem ser atestados, como a desnutrição em si, mas também danos relativos ao sistema imunológico. Há alterações mais agudas das defesas dessas crianças por conta de diversos nutrientes perdidos, como ferro, vitamina A, proteína e carboidratos, que são estruturais para formação e desenvolvimento da criança.  "A longo prazo existem problemas do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, de habilidades como leitura, escrita, aprendizagem da linguagem, e aí já temos uma criança que não está indo ao colégio e já tem esse impacto da alimentação", explica Virna. 

Virna chama atenção também para os impactos negativos globais a longo prazo. Ela cita um estudo realizado após a Segunda Guerra Mundial, na Holanda, onde a população passou períodos de fome consumindo, em média, cerca de 600 calorias por dia, quando o ideal durante a gestação é 2.000 a 3.000 calorias. A longo prazo, essa falta de nutrientes faz uma programação metabólica nessas crianças, que estão sujeitas a mais doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, hipertensão e até mesmo algumas doenças psiquiátricas.

Uma solução viável é oferecer informação a essas famílias sobre como ter acesso a alguns tipos de alimentos mais acessíveis e mais nutritivos. "O acesso à informação é algo muito importante. É preciso auxiliar essas pessoas e identificar essa população de risco, que precisa de mais atenção nesses fatores".