Falta de informação e transparência dificultam combate à Covid-19 entre indígenas
Com mais de seis meses desde o início da pandemia do novo coronavírus, pesquisa aponta que dados do Ministério da Saúde não refletem real situação da Covid-19 nas aldeias
11:58 | Set. 24, 2020
Boletim sobre a transparência da Covid-19, Open Knowledge Brasil (OKBR), mostra que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, não monitora os reais impactos da Covid-19 entre a população indígena no País. A falta de gestão da informação e transparência resulta na subnotificação no número de mortos em todo o território nacional.
“É grave porque você deixa de conhecer dados importantes, de direcionar as políticas públicas. Além disso, prejudica o trabalho dos pesquisadores que estão buscando sobre o comportamento da doença, se impacta de uma maneira diferente em quem tem características diferentes. Se tivéssemos uma base melhor, daria para ter mais estudos sobre”, lamenta Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da OKBR.
A organização, apoiada pela Hivos - entidade sediada na Holanda que dá apoio ao desenvolvimento de países pelo mundo -, por meio da iniciativa Todos os Olhos na Amazônia, divulgou na terça-feira, 22, estudo que reforça as denúncias de líderes indígenas desde o início da pandemia.
Conforme dados oficiais da Sesai, foram registrados 426 mortes até a última sexta-feira, 18. No entanto, os números não consideram casos em indígenas vivendo em terras não homologadas. Conforme o estudo da OKBR, na base de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) ― casos graves de Covid-19 com necessidade de hospitalização ― há 529 falecimentos de indígenas em 183 municípios de todo o País.
Os registros oficiais apontam 106 óbitos por SRAG "não especificados". Neste caso, as pessoas tiveram sintomas semelhantes à Covid-19, mas não houve testagem para a confirmar a doença. Contudo, o relatório ressalta que, mesmo somados, o número de óbitos podem estar subestimados.
O material traz ainda três possíveis problemas que acentuam a subnotificação dos dados. O primeiro deles é que desconsidera os óbitos existentes, a partir dos casos considerados leves e sem hospitalização, entre as notificações registradas no eSUS-Notifica. Outro trata da inconsistência da inclusão da variável raça/cor, já que alguns indígenas são classificados como pardos. O terceiro ponto diz respeito, no caso dos dados gerais, à falta de registro de 25% da raça/cor, ou por classificação do casos como "ignorado".
Com ausência do Ministério da Saúde e do Sesai, o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena realiza, por meio das organizações de base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), monitoramento independente para registro dos casos. Em 19 de setembro, a contagem marcava 819 mortes. Quase o dobro dos dados oficiais. No entanto, pela falta de transparência e ausência de detalhamento das informações da Sesai, não é possível conferir os casos duplicados entre as duas bases de dados.
Fernanda ressalta que, desde 2017, o campo raça/cor e etnias, no caso do atendimento aos povos indígenas, é obrigatório nos sistemas do Ministério da Saúde. No entanto, o requisito não foi imposto no início da pandemia. Só foi possível, seis meses depois, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que votou favorável à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, que obrigou o Governo Federal a adotar medidas para conter o avanço do vírus entre os povos indígenas.
Em nota, o Sesai afirma que não há subnotificação em relação aos dados referentes aos índios aldeados e que não comenta levantamentos paralelos. A Secretaria trata ainda que antes de qualquer ação judicial, a Saúde Indígena cumpriu o papel constitucional de levar atenção básica de saúde aos povos originários, acrescido do desafio de evitar, ao máximo, o contágio de indígenas. Um dos exemplos citados pelo órgão é a criação das Equipes de Resposta Rápida contra à pandemia.
"Não houve e não há qualquer precariedade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e o atendimento às determinações da ADPF 709 está sendo realizado de forma planejada e com acompanhamento do Controle Social. Além disso, a SESAI conta com 14 mil profissionais em área, sendo quase 60% indígenas", destaca a Secretaria.
Falha na identificação étnica nos estados
Com os imbróglios para registros étnicos, a OKBR conclui que a transparência do indicador étnico indígena está aquém do ideal em todo o país. Há performance melhor nos estados e capitais da Amazônia. O Ceará, neste quesito, tem 78% do detalhe vazio ou ignorado para os casos de Covid-19 ou SRAG. O pior desempenho é do Distrito Federal, onde 100% dos casos não foram detalhados.
Em relação à raça ou cor de todos os óbitos decorrentes do Sars-CoV-2, o Ceará sobe para a segunda posição com o menor desempenho. Em 40% dos casos, o item ficou vazio ou foi ignorado. O estado só perde para a capital do País, onde 58% dos registros não incluiu essa variável.
“Se o movimento indígena não mobilizar, não temos atendimento de qualidade”, diz líder Tapeba
“Com algumas ações judiciais, mediação do Ministério Público, ações da coordenação da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e ajuda de alguns partidos políticos, a decisão para melhorar o atendimento dos indígenas aldeados e quem não estava dentro das aldeias deu uma grande melhorada”, comemora Cassimiro Tapewa coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
No entanto, para o representante dos tapebas, “se o movimento indígena não mobilizar, não temos atendimento de qualidade”. Cassimiro conta que, com aumento rápido dos casos no início da pandemia, houve dificuldade no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Recorda ainda de quando os tapebas figuraram entre as comunidades com mais casos confirmados do nordeste e o 10º do País.
Seis meses após o início da pandemia, o trabalhador da Saúde Indígena conta que, no transcorrer do período, “o grande problema foi em relação à segurança alimentar. Algumas aldeias mais distantes, como no interior do Estado, tiveram problemas de ir às cidades para comprar e sacar dinheiro. A questão dos auxílios emergenciais também prejudicou porque tivemos de sair das nossas comunidades”.
Cassimiro diz que houve falta de comunicação com o Governo Federal. No caso da Secretária de Saúde Indígena, significativa subnotificação de óbitos em decorrência da Covid-19. Ele comemora o empenho dos profissionais da ponta para atuar no combate à doença, mas ressalta a falta de suporte necessário. Além disso, no pico da doença, a ausência de mais especialistas prejudicou o atendimento dos povos.
“É interessante colocar que, nos últimos dias, o Governo Federal teve fazendo ataques contra as organização. Neste momento, a gente está captando recursos para chegar EPIs, material de higiene e alimentos às aldeias. O próprio governo atacou as nossas aldeias, Apib e Apoinme. Mas é a gente que está na luta para o enfrentamento à Covid-19.”
Números oficiais
Conforme último Boletim Epidemiológico da Sesai, atualizado na terça-feira, 22, às 17horas, há 44 índios infectados pela Covid-19 no Ceará. Cinco pessoas morreram pela doença. 40 ainda estão em investigação. No total, 667 casos já foram confirmados no Estado.
Em relação ao País, já foram 27.098 casos confirmados de Covid-19 entre índios aldeados. Atualmente, há 4.521 infectados. Outros 874 são suspeitos. No total, 431 indígenas já morreram em decorrência do novo coronavírus.