O pioneirismo contra o racismo: conheça a Lei Afonso Arinos

Tida como percursora nas regulamentações contra o racismo, a Lei Afonso Arinos completa nesta quinta-feira, 3, 74 anos de criação. Glória Maria foi a primeira brasileira a utilizar a lei

19:27 | Jul. 03, 2025

Por: Bárbara Mirele
Imagem de apoio ilustrativo. Pessoas participam de manifestação para protestar contra o governo do presidente Jair Bolsonaro e contra o racismo e em solidariedade ao movimento Black Lives Matter, na Esplanada dos Ministérios em Brasília, em 7 de junho de 2020 (foto: Sérgio Lima/AFP)

Considerada como um marco na luta antirracista, a Lei Afonso Arinos foi criada há 74 anos, em 3 de julho de 1951. Na data de aniversário da lei, O POVO debate a importância sobre a regulamentação, que é tida como percursora de leis contra o racismo.

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Como surgiu a Lei Afonso Arinos?

 

A criação da lei se deu após um episódio racista sofrido pela dançarina e coreógrafa americana Katherine Dunham. O gerente do Hotel Esplanada, em São Paulo, havia se recusado em hospedar a dançarina quando descobriu que ela era uma “mulher de cor”.

À época Katherine, que era antropóloga e ativista social nos Estados Unidos, fez a denúncia do caso entre o intervalo entre o primeiro e segundo ato de sua turnê, aos jornais locais.

Veículos de comunicação da época noticiaram o crime sofrido pela americana. Foi o caso do Jornal de Notícias, que descreveu o fato como “odioso procedimento de discriminação”. Já o sociólogo Gilberto Freyre — autor de Casa Grande e Senzala — afirmou que o caso era um “ultraje à artista admirável” e fazia o Brasil “amesquinhar-se em sub-nação”.

Um ano após o episódio racista, em 1951, foi criada a Lei Afonso Arinos, que tornava como contravenção penal quem recusasse atendimento em estabelecimentos públicos ou privados, como instituições de ensino, supermercados e hotéis, por motivo de raça ou cor.

A regulamentação é considerada como a primeira lei de combate ao racismo no Brasil, e foi criada 60 anos após a abolição da escravidão.

Lei serviu para "tirar o véu da hipocrisia", afirma advogado

O advogado e coordenador do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Dom Aloísio Lorscheider (EDHAL), Marcus Giovani Ribeiro, explicou ao O POVO que a Lei Afonso Arinos foi criada com intuito de identificar e responsabilizar os agressores que cometem racismo.

Marcus explica que uma contravenção penal não é considerada como crime e sim uma espécie de ilícito. “É algo menor, menos gravoso”. Jogos de azar, , e urinar em locais públicos são exemplos de contravenção penal.

Mesmo sendo uma contravenção, de acordo com o advogado, a lei serviu de importância para “tirar o véu da hipocrisia”. “Como a gente cria uma lei de proteção à população negra em um país que não é racista? E aí já serve para dizer ‘não, o Brasil é sim racista’. O estado teve que se debruçar sobre essa temática”.

Ele conta que, apesar de prática, a aplicabilidade da lei deixa muito a desejar. A lei vigorou até o ano de 1989, com a criação da , que passou a ser considerada como uma atualização da lei anterior.

Sobre a lei não ter entrado em vigor, Marcus esclarece que não foi possível operacionalizá-la. “É o que acontece com a maioria das leis que trabalham na perspectiva de identificação e de reparação dos direitos da vítima de racismo".

Mesmo após a criação da Lei CAO, muitos dos crimes eram registrados como contravenção penal. Marcus explica que o Brasil foi formado a partir do racismo. “Então, quando você ataca a lógica racista, você tá atacando a razão de ser do estado”.

A Lei Afonso Arinos teve a função de trazer à tona, as tensões raciais existentes no Brasil. O lado positivo da criação da lei, de acordo com Marcus, é trazer a discussão do racismo à sociedade brasileira.

“Reconhecer que no Brasil existem tensões racistas, que é um país racista. E que o estado não pode mais fechar os olhos [para essa questão]”.

Marcus afirma que há um vácuo operacional na apuração de violências racistas, “no sentido de identificar a pessoa que cometeu o ato racista e de restaurar o direito da vítima”.

Ceará teve 373 ocorrências por preconceito de raça ou cor em 2024

De acordo com o painel dinâmico “Crime ou Preconceito de Raça ou Cor”, da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), o ano de 2024 teve o maior número de crimes de preconceito por raça ou cor, com 373 ocorrências. O painel aponta que até o quadrimestre deste ano pelo menos 146 casos ocorreram.

Os dados apontam que a maioria das vítimas são mulheres, com 48,52%. Entre o gênero, pelo menos 19,82% tem a faixa etária entre 24 a 29 anos.

Os crimes, em sua maioria, acontecem no período da tarde (36,66%), seguido pelo turno da manhã (32,10%), em terceiro lugar vem o turno da noite (26,03%) e por último o período da madrugada (5,21%).

Como marco importante para o Ceará, o advogado cita a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim), da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE): “É um grande avanço”.

Glória Maria foi a primeira brasileira a utilizar a lei

O professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira e também autor da pesquisa “As relações raciais no Ceará e o raid dos jangadeiros negros em época de Lei Afonso Arinos (1951-1958)”, Arilson dos Santos Gomes, conta que a origem da lei se deu pois o deputado Arinos afirmar que um motorista dele sofreu preconceito no Rio de Janeiro.

“Mas a opinião pública entendia que a movimentação do Congresso Brasileiro ocorreu pois um ano antes a dançarina americana havia sido impedida de se hospedar no hotel Esplanada”, explica.

Conforme Arilson, a importância da lei se dá quando o Brasil reconhece que é racista. “[Durante] décadas anteriores, o Brasil sempre dizia que aqui se vivia sem preconceito de cor, que aqui se vivia sem racismo. E o problema era onde? Nos Estados Unidos”.

O pesquisador afirma que a importância do momento em que Glória Maria foi a primeira brasileira a utilizar a lei é a “consciência de conhecer as leis e ser uma mulher negra”.

De acordo com ele, a repórter se encontrava em uma posição midiática — no contexto de jornal e televisão. “Ela usa a posição dela para ter coragem. A partir disso outras pessoas começaram também a denunciar. Então essa repercussão foi muito importante para conscientização das populações que sofrem racismo, sobretudo as populações negras", explica.

Arilson afirma que o Brasil era vendido com uma imagem de país miscigenado, onde as culturas se integravam. “Mas no cotidiano as populações negras sempre questionavam e acusavam situações de racismo. Por exemplo, no Ceará mesmo se dizia que não existia negro”, conta.

"Isso [a lei] é muito importante, porque o pós-abolição não trouxe melhoria para a vida dos libertos. A partir do momento que tu tem uma lei que diz que existe racismo, ao menos tu tem um mecanismo jurídico que as pessoas que sofrem possam denunciar".

A lei demorou para ser acionada por conta dos problemas estruturais da sociedade brasileira. “As pessoas denunciavam e diziam que era brincadeira: ‘não, eu tava brincando, não. Eu não tomei meu remédio. A grande questão do Brasil é que era um racismo velado, era vergonhoso dizer que era racista’”.

O pesquisador destaca que as pessoas começaram a ficar mais conscientes para denunciar casos de racismo. “Naquele contexto era mais precarizado. Por isso demorou tanto para pegar a lei”.

“Ela teve seus limites, o contexto também tinha. Mas [a lei] foi um ponto de saída para este reconhecimento que hoje se faz cada vez mais importante, para que a gente consiga, de fato, fazer uma sociedade que as pessoas, mesmo com as suas diferenças, sejam tratadas de maneiras iguais", finaliza.