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Ser mãe em tempos de guerra

2017-11-20 01:30:00

Pouco antes de ser assassinado, um dos adolescentes vítima da chacina ocorrida no Centro Mártir Francisca, em Sapiranga, no último dia 12, é obrigado a mostrar a mão tatuada para a câmera. O registro, sob a forma de imagem, seria a prova de envolvimento com uma facção rival, conduta passível de punição exemplar: mão decepada seguida da morte. A expressão do menino é de puro pânico e terror. Para quem tem filhos, é chocante ver a infância ser aniquilada daquela forma. Para quem tem filhos cumprindo alguma medida no sistema socioeducativo, contudo, trata-se de uma realidade cotidiana, em que a luta e o luto se confundem, e a dor é uma certeza constante.


A coluna conversou com um grupo de mulheres que integra o movimento Mães do Socioeducativo a fim de entender como é criar os filhos em um contexto de violência deflagrada e de “guerra de facções”. O grupo de mães surgiu em 2013 com o objetivo de reivindicar melhores condições para os adolescentes internados em centros educacionais. Se o sistema socioeducativo nunca foi uma referência positiva no processo de ressocialização dos jovens, o cenário se agravou com o confronto aberto entre grupos criminosos rivais. Alessandra Félix, pedagoga, mãe e uma das porta-vozes da organização, comenta: “A gente começou a lutar por direitos básicos: água, comida, visita e que deixassem de bater em nossos filhos. Hoje, a luta é pela vida deles. Hoje, a nossa fala parte da seguinte mensagem: deixem nossos filhos viverem”.


Muitos adolescentes são mortos pouco tempo depois de saírem dos centros educacionais. Esse foi o caso do filho de Ana (nome fictício). “Ele era evangélico, mas isso não é mais respeitado. Se estava na igreja não é para mexer, mas eles não estão mais respeitando. O pastor chegou a dizer que ele tivesse cuidado com os inimigos”, comenta. Telma (nome fictício), cujo filho foi um dos sobreviventes da chacina, afirma que o adolescente só foi liberado porque não foi identificado como pertencente à facção: “Ele seria um desses meninos que iriam morrer também, mas os meninos gritaram lá de dentro (do centro) que ele não era de facção. (Os assassinos) perguntaram o bairro dele e ele respondeu. E aí disseram: ‘pois volta daqui’. Da escada ele retornou”.


Alessandra Félix cobra maior sensibilidade por parte das autoridades em relação ao tema: “Peço ao governador e ao secretário da Segurança Pública que se solidarizem com as famílias, que parem de transferir a culpa e que possam tranquilizar as mães dizendo que algo está sendo feito. Queremos pelo menos uma política de proteção para este momento”.


De modo geral, as mães têm de se desdobrar entre trabalhar, acompanhar o filho que cumpre medida e, além disso, cuidar dos demais para que não enveredem pelo mesmo caminho. Sara (nome fictício) perdeu um filho por causa da violência e teme pelo futuro do caçula, de 6 anos: “Nunca quis mostrar para o meu filho mais novo o que estava acontecendo com o irmão. Eu dizia que ele estava numa escola de adultos. No final de ano, ele perguntava: ‘a aula dele não terminou não’? Quando meu filho foi morto, tivemos de fazer toda uma preparação, dizer que Deus estava precisando dele no céu”.


Márcia (nome fictício) conta que, apesar de serem da periferia, o que leva os meninos a praticarem ações delituosas não é a necessidade, mas a influência dos amigos e a vontade de ser reconhecido: “A gente ouve muito que os pais não educaram, que não estavam nem aí e que por isso os filhos estão nessa situação. Mas não é assim. Eu sempre fui uma mãe presente e até hoje me pergunto: ‘Onde foi que a gente errou’? Meu filho já perdeu muitos amigos queridos e está acompanhando meu sofrimento. Eu tenho esperança que ele saia dessa vida e sempre digo que ele ainda tem chance”.


O drama dos adolescentes internados no Ceará já ganhou proporções internacionais. Na sexta-feira, dia 17, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez uma inspeção em três centros educacionais após ter imposto medidas cautelares ao Estado brasileiro. Para que essa realidade mude, é preciso que o Governo do Estado compreenda que a queda nos índices de violência e de criminalidade também passa pelo modo como lidamos com esses meninos. O que vemos, contudo, é a reprodução da lógica do sistema penal em menor escala. Os centros educacionais devem ser espaços seguros de acolhida e de apoio à reabilitação, funcionando como uma segunda rede de proteção social após a escola. Qualquer perspectiva de solução só virá quando passarmos a tratar esses jovens sob um olhar materno: como portadores do nosso futuro e não mais como uma ameaça ambulante.


Se o sistema socioeducativo nunca foi uma referência positiva no processo de ressocialização dos jovens, o cenário se agravou com o confronto aberto entre grupos criminosos rivais


De modo geral, as mães têm de se desdobrar entre trabalhar, acompanhar o filho que cumpre medida e, além disso, cuidar dos demais para que não enveredem pelo mesmo caminho

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