PUBLICIDADE

80 tiros - A face mais cruel do incentivo à política do abate

00:00 | 15/04/2019

As oitenta marcas de tiros encravadas no veículo do músico Evaldo Rosa dos Santos, 46, acompanhadas do relato de sorrisos e deboche dos militares do Exército responsáveis pelo fuzilamento, retratam a face mais cruel do incentivo à política do abate que encorpou discursos e elegeu inúmeros candidatos pelo Brasil nas últimas eleições, incluindo o presidente da República.

Justamente por esse motivo, o episódio registrado em Guadalupe, no Rio de Janeiro (RJ), não pode ser considerado um caso isolado, nem tampouco pontual. Ele é parte de uma conduta que mata centenas de brasileiros, ano após ano. A diferença, agora, é que esses crimes ocorrem com o aval - público - das lideranças políticas, hipócritas e também responsáveis por esses casos que são. Daí o sorriso, daí o deboche. Há uma legitimação. Um incentivo aos tolos.

Tão rápido quanto insurgem nas redes sociais para parabenizar os atiradores, aos quais são oferecidas medalhas nos casos em que os mortos são suspeitos de crimes, àqueles que incentivam a barbárie fazem um silêncio constrangedor diante da execução sumária de um trabalhador, morto enquanto estava a caminho de um chá de bebê.

Oitenta tiros foram disparados contra o carro de Evaldo, e contra uma família inteira, por aqueles que deveriam protegê-los. Não havia blitz, não houve ordem de parada. Nenhuma ação que justificasse os disparos. Somente a suspeita, traduzida na ânsia por matar. Busca por justiçamento e reconhecimento que devastaram uma família inteira.

No Brasil, para muitos, isso é algo normal, sobretudo para quem já verbalizou que está "tudo bem" quando inocentes morrem nessa guerra. Para o Palácio do Planalto, tudo não passa de um "incidente". Não há manifestação de pesar. Necessária mesmo, no entendimento da Presidência, é tão somente a obviedade de apuração "mais correta e justa possível".

É que nessa balança, a presunção de inocência dos militares vale muito mais do que a de Evaldo, que a de sua esposa, que a de seu filho - de apenas 7 anos -, que a de seu sogro e afilhada. Para estes, cinco dias após a tragédia, nada a declarar. Já aos agentes da Rota que mataram 11 criminosos em uma tentativa de assalto a bancos em Guararema (SP), no último dia 4, congratulações em poucas horas.

"Parabéns aos policiais da Rota (PM-SP) pela rápida e eficiente ação contra 25 bandidos fortemente armados e equipados que tentaram assaltar dois bancos na cidade de Guararema e ainda fizeram uma família refém. 11 bandidos foram mortos e nenhum inocente saiu ferido. Bom trabalho!", postou Jair Bolsonaro (PSL) no twitter. Sobre o ataque do Exército, no entanto, calou-se.

Fato é que os inocentes mortos nessa guerra, assim como a família de Evaldo, quase sempre vivem longe dos Cocós, Aldeotas e Meireles que existem pelo País. Na lei do "atire primeiro e pergunte depois", da "licença para matar" e da "justiça ou cemitério", prevalece a morte da população negra, pobre e moradora da periferia. São os matáveis.

Foi assim - para continuar no Rio - que o garçom Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, 26, foi baleado e morto por policiais militares que confundiram um guarda-chuva com um fuzil, em 2018; e que cinco jovens, incluindo Roberto de Souza, 16, foram fuzilados e mortos com 111 tiros pela PM, em 2015, quando retornavam de uma comemoração pelo primeiro salário de um deles.

Nas redes sociais, comentários asquerosos sempre relativizam as tragédias e cobram a mesma "comoção" para outros casos. Tentam desfiar o foco do problema. São os robôs da internet, indivíduos carentes acostumados a ouvir e disseminar somente aqueles que pregam a bestialidade.

A estes, lembro que outras pessoas foram baleadas pelos militares em Guadalupe. Um deles é Luciano Macedo, catador de material reciclável que vive em situação de rua e está com a esposa grávida de cinco meses. Ele continua internado, em estado grave. Foi ferido ao tentar ajudar os atingidos no carro. Comovam-se ao menos por ele. Desejem que se recupere. Sejam úteis.

E não confundam a morte de Evaldo com uma falha, um engano, um incidente passível de ocorrer. Ela é fruto da liberdade para matar, do excludente de ilicitude para os casos "excesso" decorrente de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Em tempo, escrevi essa coluna na tarde da última sexta-feira, 12, pouco antes do presidente Bolsonaro se manifestar, pela primeira vez, sobre o caso. Eu havia rabiscado que talvez fosse melhor assim. Seria preferível o silêncio a uma declaração que ofendesse ainda mais a memória de Evaldo e sua família. Ou alguém esqueceu a reação do governador Camilo Santana (PT), poucas horas após o episódio de Milagres?

Pois bem, Bolsonaro falou. "O Exército não matou ninguém, não, o Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino, não. Houve um incidente, houve uma morte, lamentamos a morte do cidadão trabalhador, honesto, está sendo apurada a responsabilidade", disse. Lamentavelmente, meu pressentimento estava correto.

Thiago Paiva