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Onte, ontonte, ternantonte...

00:00 | 14/06/2019

Praieira das Caraúbas, na Caucaia, chamavam-na Muritúria. "No falar a mais linda canção" matuta que já ouvi. "Moradêra" do sítio de meus avós, onde também viviam as tias vitalinas Chiquinha e Maria, foi quem primeiro me ensinou cearês. Dizia que curava "boquêra" com pedra ume; que não usava "gosmético, desses de 'impuzuar' a cara", para não deixar as carnes "só o langãe (langanho) véi".

À boca miúda, a moça não tinha o juízo certo. "É mental", diagnosticava tia Chiquinha. "Doida do caneco rodar", acentuava tia Maria.

- A senhora tá exagerando? - ponderava mamãe, diante de uma tia psiquiatra.

- Exagerando? Pois me diga como é que uma criatura dessas escapa milagrosamente de morrer na virada daquele ônibus na BR e diz ao policial que preferia bater a caçuleta a ter mostrado o fundo das calças ao povo que ia passando no local! Diga!

Mordida de abelha

O fato é que eu gostava da Muritúria, por vários motivos: as tapiocas de coco que fazia no forno da farinhada; o café com manjirioba, as peixadas de saúna e, principalmente, o feijão na água grande (escoteiro - puro), com um ou outro gorgulho afogado, segurando sem forças a folhinha do cheiro verde, na panela de barro imensa, acocorada no forno à lenha.

Como se hoje fosse, gravei na memória essa conversa dela com mamãe, nas Caraúbas dos anos 60. Reclamava.

- Minha fia, foi distrôço grande demais aqui em casa, ontonte... ou foi ternantonte!

- Que houve, mulher? Tem a ver com essas papócas no teu corpo?

- Sim. Um enxame de capuxu (vespa que produz bom mel). Estavam num furgimuêro acolá no terreiro. As bicha invadiro a cozinha e ferroaro o povo daqui todo. Surra de ferrão pra dez, eu levei sozinha!

- E como escaparam?

- Quando atufaiemo o furmiguêro com mulambo de pano, toquemo fogo, tiremo o capuxu com mel, abêia e tudo. Aí bebemo ele, bem docim. Respeite!

Que horas poderão serão

Ouvíamos as histórias admirados com os detalhes, o modo ingênuo de Muritúria se expressar. Vendo que mamãe se levantava do tamborete, perguntou se ela "já estava se balançando pra ir embora". Que não fosse, tinha merenda para todos.

- Pegue banana coruda, tire a roupa de duas ou três e coma sem-vergonhamente, enquanto eu vou dar carga no jumento.

- Cuma? - me invoquei com a frase dela.

- Botar o bichim pra comer... Que horas poderão serão, madinha?

- Mei diinha! - respondeu mãe, mirando o pulso.

- Vou cuidar de terminar o dicumê. Tamo tudo com o bucho colado no espinhaço!

A pomba do Divino

Terminado o babaçu, beirando uma da tarde, hora de voltar a Fortaleza. Uma riqueza a visita ao Pai Doca e as tias Chiquinha e Maria, casa onde morava dona Muritúria. "Parece cachorro magro: comeu, vai embora!", tascou ela, vendo a gente partir.

- Barriga lá em cima, né? - falou feliz.

- Comida excelente, mas é hora. Caminho de volta é longo. Já, já é noite.

- Ah, madinha! Quando vier da próxima vez, traga um lificador (liquidificador). Pode ser ou tá difícil?

- Marrumeno.

- Pois vão com Deus e a pomba do Divino, que é branca!

E fumo...

Tarcísio Matos