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O menino de Ch'ulp'o (Parte 2 de 2)

05:00 | 26/02/2019

No pequeno povoado coreano do século XII, o protagonista de Por um simples pedaço de cerâmica (Martins Fontes), da escritora Linda Sue Park, pode ser visto pelo leitor como alguém que está bem próximo, tão pura é a sua essência humana. O livro surpreende em sua rebuscada simplicidade. Nele, até o desprezo é grandioso. O dia-a-dia do menino e do mestre ceramista é marcado por conflitos psicológicos em erupções comportamentais, realçadas no texto com muita habilidade, entre a impaciência de um e o fascínio do outro.

Com aceitações que às vezes parecem recusas, eles se fortalecem na separação entre o fundamental e o supérfluo. São personagens que agradam, mesmo quando suas atitudes são desagradáveis. Isso nos dá quase uma responsabilidade de procurar entender, sem julgar, seus pensamentos e paixões, seus momentos de vergonha e de ressentimentos. Talvez essa atitude prove o quanto estamos na mesma página dos personagens, sentindo suas vibrações, o ressoar do viver de cada um, fazendo contato com o que somos, quer saibamos disso ou não.

Linda Park abre ao leitor a paisagem de uma cultura. Filha de migrantes coreanos, ela mora em Nova Iorque. Ler seu trabalho é quase vê-la escrevendo, como o menino da história, quando "incentivado pelo silêncio" observava por trás das árvores o mestre ceramista. A autora se faz percebida através de uma linguagem que exprime a emoção dos seres em descoberta da evidência do semelhante. Nota-se que ela teve o desejo de contar a história dos avanços contidos de uma criança e das dificuldades de permissão de um adulto, em uma obra com ethos bem resolvido, com contação fluida, humores transparentes e moralidade sem reservas.

Os ensinamentos do Homem-garça mostram o quão é salutar para a vida que respeitemos o olhar de quem, tendo ou não tido a oportunidade de ler as grandes obras do mundo, aprendeu a "ler o próprio mundo". Ao menino que ele criou sob uma ponte, costumava transmitir com amor que "uma tradição respeitada pode ser mais poderosa do que uma lei". Quando, por exemplo, o mestre ceramista, já idoso e mesmo precisando de ajuda, recusa o trabalho do menino, alegando não poder pagá-lo, o menino fica alegre por perceber que aquele "não" poderia ser lido como um "sim". E era o sim que mudaria a sua vida para sempre.

A formação da consciência no exercício cotidiano é muito bem trabalhada por Linda Park por meio do jogo de pensamentos em conflito. Ser inteligente é muito pouco para quem deseja a fortuna de existir. O trecho em que o menino se delicia com a primeira refeição conquistada com o seu próprio esforço, mas esquece de guardar um pouco para o Homem-garça, leva-o a pensar no quanto é fácil ser ganancioso. E quando a gente pensa que o que importa é esse arrependimento, a narrativa diz que não, o que vale é saber o que o possível prejudicado acha com relação ao que ocorreu.

Em que pese o menino ter uma mudança na sua configuração familiar e de ter ganhado um nome próprio, o livro mostra com naturalidade que a plenitude da realização pode muito bem acontecer no anonimato, desde que ocorra como resultado do desejo sincero. O livro de Linda Park é boa literatura porque nele o leitor se engrandece por graça e não por preceitos (FINAL).

 

Flávio Paiva