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'Saravá': a palavra de origem afro que marcou MPB, escancarou preconceitos e hoje estampa itens de decoração

Termo ligado aos terreiros de umbanda superou discriminação social, foi apropriado culturalmente e hoje estampa canecas e camisetas.

13:41 | Dez. 29, 2025

Por: Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Arquivo Nacional
Evento de umbanda no Rio, em 1971; palavra 'saravá' saiu dos terreiros e foi celebrada por músicas brasileiras

"Saravá" nada mais é que uma palavra de origem banto que denota uma saudação de acolhida e boas-vindas.

Mas até as palavras podem ter trajetórias atribuladas, e esse é o caso desta.

Nos mais de 100 anos desde seu primeiro registro escrito do qual se tem notícia até hoje, a palavra foi alvo de preconceitos e chacota, mas também de exaltação por alguns setores da sociedade que enxergam nela um ícone da cultura nacional.

Sua história no Brasil remonta a séculos ainda mais antigos.

O termo chegou aqui com os grupos de negros trazidos no primeiro ciclo de escravização, entre os séculos 17 e 18, de acordo com a cientista da religião, jornalista e escritora Claudia Alexandre, pesquisadora do Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras da Universidade de São Paulo (USP).

Esses escravizados eram designados como bantos, generalização aplicada a dezenas de grupos étnicos distintos da região onde hoje são Angola e Congo. Este grupo está na origem de expressões culturais como os batuques, sambas e capoeiras, aponta Claudia Alexandre.

"[Saravá] Significaria inicialmente um cumprimento na língua quimbundo [parte da família linguística banto], uma saudação, 'salve'", esclarece a pesquisadora, autora de livros como Orixás no Terreiro Sagrado do Samba.

A saudação acabou sendo perpetuada por práticas religiosas dos negros, como na umbanda e quimbanda.

Segundo a historiadora Lume Watanabe, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP) e mãe de santo no terreiro de umbanda Urubatão da Guia, "saravá" aparece escrita pela primeira vez em um ensaio jornalístico de 1923, escrito por Carlos Alberto Nóbrega da Cunha (1897-1974), um jornalista e professor de escola pública branco.

Ele era admirador da cultura dos morros, entusiasta do samba — é considerado um dos precursores do carnaval carioca, inclusive.

O texto de Cunha tinha como título Os mistérios da macumba.

"Ele menciona no final que 'saravá' era 'o salve', a maneira como 'os pretos velhos' saúdam na umbanda", contextualiza a historiadora.

Arquivo Nacional
Donga (1890-1974) era um ícone daquilo que passaria a ser visto como cultura afro-brasileira

Na mesma época, despontava na sociedade carioca o samba, capitaneado por nomes como Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1890-1974).

Filho de um pedreiro com uma mãe de santo, negro e pobre, ele era um ícone daquilo que passaria a ser visto como cultura afro-brasileira — inclusive com o componente religioso.

Sua composição Sai, Exu fez com que a palavra saravá saísse dos terreiros de umbanda.

Na música de Donga, os versos são estruturados como um canto responsorial, de perguntas e respostas.

"Isso é próprio de uma estrutura musical centro-africana", analisa a historiadora.

"É banto. Nessa música, basicamente é uma pergunta falando 'saravá, vamos saravá', e a resposta vem do coro."

A bossa nova também fica afro

Arquivo Nacional
Baden Powell e Vinicius de Moraes em foto de 1972; Powell, que virou evangélico, rejeitaria anos mais tarde cantar a palavra 'saravá'

Nos anos 1930, músicas conhecidas como do gênero macumba começam a se tornar populares, principalmente graças ao trabalho de J. B. de Carvalho (1901-1979).

O cantor e compositor levava representações dos pontos de umbanda a programas de rádio e gravações de discos.

Outro nome de destaque foi o sambista Getúlio Marinho (1889-1964).

"Eles gravavam encenações, como se uma pessoa estivesse incorporando um preto velho. O J.B. de Carvalho, por exemplo, cantava com a fala do preto velho, aquelas coisas guturais", explica Watanabe.

Segundo a historiadora, o público tinha posturas ambíguas diante dessas apresentações.

"Ao mesmo tempo em que uma parcela da sociedade, das pessoas brancas e letradas, queria saber o que acontecia nas 'religiões dos negros', com curiosidade, existia também a repressão, uma postura pública de 'vamos condená-los'", avalia.

Nos anos 1960, o saravá chega de vez às salas de jantar da classe média por meio de uma dupla muito associada à bossa nova.

O violonista e compositor brasileiro Baden Powell (1937-2000), descendente de africanos, resolveu mergulhar no mundo do candomblé e nas sonoridades da capoeira.

Encontrou como parceiro perfeito para a empreitada o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980).

Autodenominado "o branco mais preto do Brasil", Moraes conhecia esses discos de macumba desde pelo menos 10 anos antes — e era fascinado por esse universo musical.

Em 1966, a dupla lançou o LP Os Afro-Sambas.

Uma das faixas mais famosas do disco, Canto De Ossanha, diz: "Amigo sinhô saravá/Xangô me mandou lhe dizer/Se é canto de Ossanha não vá/Que muito vai se arrepender"

Canto de Xangô também traz a saudação: "Xangô meu Senhor, saravá!"

A cultura afro-brasileira estava de vez arraigada no suprassumo da musicalidade produzida e consumida pela alta-costura do intelecto nacional.

O influenciador digital e empresário Jonathan Pires, idealizador do evento Marcha para Exu, em São Paulo (SP), lembra que várias músicas brasileiras passaram a celebrar o termo, como Saravá, Saravá!, de Martinho da Vila.

"Isso, irmão, ajudou a naturalizar a saudação no país inteiro", comenta.

Mas o próprio Baden Powell rejeitaria a palavra — e suas músicas que a incluíssem — no fim da vida.

Convertido como evangélico, o músico falou ao jornal Folha de S. Paulo em 1999 que só continuaria a cantar alguns de seus "afro-sambas".

"Só alguns não posso gravar, né? O Samba da Bênção, por exemplo. Não digo mais saravá. Posso tocar o Samba da Bênção, mas não falo saravá, porque é um louvor a satanás", afirmou Powell ao jornal.

Criminalização e caricatura

Furar a barreira em torno da cultura negra tinha, na primeira metade do século 20, um obstáculo escrito: o código penal.

A legislação instituída logo após a Proclamação da República criminalizava as práticas de matriz africana em terreiros e festas populares, classificando-as como "espiritismo, magia e sortilégios" ou "curandeirismo".

"Essa moldura legal dialogava com visões de cientificismo e moralismos então dominantes. E reverberou na imprensa, criando estigma e medo em torno do que era afro-brasileiro", comenta Pires.

Claudia Alexandre lembra que, até 1976, era obrigatório registrar os terreiros na delegacia. Além disso, ela aponta para a existência de várias leis que atingiam "diretamente o negro" e da frequente perseguição de sambistas pela polícia.

Segundo a pesquisadora, contribuíam para essa perseguição a polícia, a Igreja Católica e a imprensa.

Historiador do cristianismo, o pesquisador Lucas Gesta reconhece a participação do catolicismo na construção do preconceito contra as religiões de matriz africana.

"Assim, uma expressão comum na umbanda [saravá], simplesmente pelo fato de ser oriunda de lá, acaba sendo rejeitada, caricaturizada e ridicularizada. Repare isso em programas de comédia antigos na TV e outros meios de comunicação em massa", acrescenta Gesta.

O pesquisador diz já ter presenciado várias ocasiões em que pessoas "brincam" com a palavra "saravá" como se ela propagasse uma maldição.

"O mesmo eu via em programas na TV brasileira de comédia, no qual os atores de forma caricaturizada, usavam o termo como uma quebra ou corte de alguma ação má. Também já presenciei que, quando alguém dizia que iria acontecer uma coisa ruim a alguém, a contraparte respondia 'saravá', mas não por crer ou seguir a religião, e sim apenas para o chiste", relata Gesta.

Resgate e celebração

Mas também é fato que o saravá se tornou pop.

Jonathan Pires comenta a tendência.

"Nos últimos anos, o movimento negro, as casas de religião e os artistas vêm revalorizando o 'saravá' em rituais, em redes sociais, na moda, na decoração e na cultura pop. Há uma pedagogia cotidiana contra a visão anterior", diz o empresário.

Para ele, esse cenário é resultante de avanços jurídicos, como a lei de 1997 que criminaliza o preconceito religioso, e campanhas públicas como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro.

Mas, para Watanabe, é preciso cuidado com as novas modas.

"O mercado de consumo pega termos próprios das religiões afro-brasileiras e transforma tudo isso em produto", critica a historiadora.

"Há uma tendência de ganhar dinheiro em cima dessa nova modalidade, a partir da valorização atual. 'Saravá' está presente em camisetas e em itens de decoração."

Watanabe conta que, há alguns anos, quando teve problemas com sua família e enfrentou LGBTfobia, postou em suas redes sociais a frase "é de saravá que vivemos".

"De lá para cá, vejo gente postando essa frase nas redes sociais. É curioso", comenta a historiadora.

Em sua empresa de artigos religiosos, a Chetruá, Jonathan Pires tem copos, camisetas, placas decorativas e adesivos estampando a palavra.

Mas ressalva que faz tudo "com respeito à origem e ao sentido", "junto a mensagens educativas e símbolos que afirmam a fé sem estereótipos".

"Meu critério é simples: não é só estampa. É narrativa. Cada produto vem contextualizado, com texto explicando o sentido e a saudação, para ajudar quem compra a entender que se trata de uma expressão de respeito e boa energia. Não é folclore vazio", diz Pires.

Mas ele conta que não foram poucas as vezes em que lidou com preconceitos do outro lado do balcão — gente que lê "saravá" e assume como "coisa do mal'.

"A resposta é sempre educativa: explico a origem e o sentido e, muitas vezes, a pessoa muda de postura na hora", conta.

Em outras ocasiões, observa clientes que se sentem acolhidos ao ver a palavra.

"Entram emocionados dizendo 'é a minha fé sendo reconhecida'", relata.

Para a historiadora Lume Watanabe, o Brasil lida mal com a herança africana porque "o contato com isso é o contato também com o trauma da escravidão".

Mas os movimentos negros, principalmente a partir dos anos 1970, têm promovido um discurso de autoafirmação que celebra o resgate de manifestações culturais como a própria palavra saravá.

Para Jonathan Pires, esse termo expõe um paradoxo.

"Somos uma nação profundamente moldada por matrizes africanas, mas por muito tempo ensinada a temê-las", reflete o influenciador.

"Quando uma saudação que significa 'salve, vida, força' vira xingamento, não é a palavra que está errada, mas é a leitura racista que se impôs. O resgate atual diz muito sobre um Brasil que deseja reconhecer sua origem, reparar injustiças simbólicas e falar de si com verdade. Recolocar 'saravá' no lugar de honra é, no fundo, recolocar pessoas negras e suas espiritualidades no centro da narrativa nacional."