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'A escala 6x1 vai ser um debate fundamental na eleição de 2026', diz Felipe Nunes, da Quaest

Sócio-fundador da Quaest lança O Brasil no Espelho, livro que traça o perfil identitário do brasileiro e ajuda a entender os anseios da população para as eleições do próximo ano.

06:06 | Dez. 18, 2025

Por: Marina Rossi - Da BBC News Brasil em São Paulo

Os brasileiros estão cansados, trabalhando demais, frustrados e querendo uma vida mais flexível. E esse sentimento vai ser um dos nortes do debate eleitoral de 2026.

Mais especificamente, o fim da escala 6x1 e a flexibilização da jornada serão temas muito presentes no próximo ano, segundo o cientista político Felipe Nunes, sócio-fundador do instituto de pesquisas Quaest.

O governo federal tem feito esforços para demonstrar apoio à ideia do fim da escala — em declaração feita no dia 02 de dezembro, por exemplo, a ministra da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Gleisi Hoffmann, afirmou que a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem "compromisso em defesa do fim da jornada de trabalho 6x1 sem redução de salário".

As conclusões de Nunes foram baseadas em uma pesquisa realizada com 10 mil brasileiros entre novembro e dezembro de 2023, encomendada pela TV Globo. O resultado desse levantamento está no livro O Brasil no Espelho - Um guia para entender o Brasil e os brasileiros (editora Globo Livros), um raio-x do brasileiro contemporâneo.

Na obra, Nunes classifica os brasileiros em nove perfis identitários, com valores, visões e preferências políticas distintas. São eles: conservadores cristãos (27% dos brasileiros), dependentes do Estado (23%), pertencentes ao agro (13%), os progressistas (11%), militantes de esquerda (7%), empresários (6%), liberais sociais (5%), empreendedores individuais (5%) e os que se identificam com a extrema direita (3%).

A partir desses perfis, Nunes destrincha valores e anseios distintos da população brasileira.

Mesmo em um Brasil polarizado, há espaço para valores em comum, como o apreço pela fé e pela família, que não está necessariamente ligada a graus de parentesco, defende Nunes.

"O que define família para o brasileiro é o amor, mais do que o laço sanguíneo", disse Nunes, em entrevista à BBC News Brasil. "Acho isso muito importante para explicar aquilo que nos une, independentemente da visão de mundo que a gente tem."

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Para Nunes, o fim da escala 6x1 e a flexibilização do trabalho serão pautas centrais no debate eleitoral

Além dos perfis sociais, o estudo revela as diferenças de valores e percepções em relação ao gênero. As mulheres, segundo Nunes, são mais progressistas que os homens. E precisam ter "coragem ao quadrado".

"Coragem para andar na rua e vivenciar a violência, mas também coragem para enfrentar os desafios e as mudanças do mercado de trabalho do mundo público."

Já os homens precisam ser sinônimo de força, poder e proteção, diz.

Em ambos os casos, um ponto em comum: quase metade dos brasileiros está desinformada. Para chegar a essa conclusão, a pesquisa fez três perguntas sobre notícias factuais. "42% dos brasileiros não acertaram nenhuma dessas quatro questões, quase metade dos brasileiros não tinha ideia do que estava acontecendo à sua volta".

"Mas a segunda questão é mais importante do que essa, porque perguntei para todos esses quase 10 mil brasileiros quantas dessas perguntas eles achavam que tinham acertado. E 70% dos brasileiros superestima o que sabe", conta.

"Ou seja, nós estamos falando de uma população que vai para o embate público, que vai para o debate sobre política, sobre economia, sobre saúde pública, achando que sabe mais do que sabe."

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Vamos começar falando sobre os nove perfis identitários que vocês traçaram.

Felipe Nunes - A gente tem ouvido muito falar sobre polarização e eu senti a necessidade nesse trabalho de ajudar o brasileiro a entender o que nos une e o que nos separa.

E para fazer isso de uma maneira que eu achava mais efetiva, ao invés de olhar para as divisões de sexo, idade, escolaridade e renda, eu peguei toda essa bateria de valores que a gente estudou, atitudes e preferências e rodei uma análise estatística que me deu quais são as bolhas, as tribos que a gente vive. E o que a gente encontrou foi um combinado de nove tribos, nove bolhas que explicam muito bem essa divisão brasileira hoje.

Você tem o militante de esquerda, um grupo que tem aproximadamente 7% do Brasil. É um grupo bem militante mesmo, ligado a partido político, que tem uma visão bem à esquerda.

Tem a classe D e E, os dependentes do Estado. Aproximadamente 23% do Brasil se encaixa nesse segmento. É a população que realmente depende do Estado para conseguir viver seu dia a dia, são as pessoas mais pobres.

Tem os progressistas, 11% do Brasil, a turma que tem aquela visão mais à esquerda, uma visão de defesa de ESG [sigla para environmental, social and governance, ou a preocupação com meio ambiente, com responsabilidade social e transparência] dessa pauta de minorias, um público do lado do Lula, por exemplo, um público importante.

Tem o conservador cristão, o maior segmento do Brasil. É a turma que é muito tradicional, muito família, muito religiosa. Esses 27% marcam fundamentalmente o lado da direita brasileira.

Tem o agro: 13% do Brasil. O agro que ficou não só pop, como diz a propaganda, mas também ficou importante econômica e politicamente.

Tem os empresários, que são 6% dos brasileiros. Acho que essa classificação diz por si só.

E aí você tem três grupos que precisam de um pouco mais de atenção nesse momento: primeiro, os liberais sociais, aqueles que têm uma visão liberal da economia, mas acreditam na social-democracia, no papel do Estado. Nós estamos falando de 5% do Brasil.

Por que eles são importantes? Porque a vida inteira eles votaram contra o Lula, só na eleição de 2022 eles mudaram de lado. Então, acompanhar o movimento dos liberais sociais é fundamental para entender a eleição de 26.

Os empreendedores individuais são muito importantes porque eles não existiam como segmento até pouco tempo. São filhos da classe D e E, jovens, em sua maioria empreendedores, que passaram a ter uma outra visão de mundo. Esse grupo é importante porque em 22 eles quase se dividiram também são 5%, mas 52% deles votaram no Lula, 48% não. Então vamos ver como eles vão se comportar.

E o último desses segmentos, a extrema direita. Quando a gente faz o mapeamento de tamanho, eles são 3% do Brasil. Nesse público, 100% deles preferem um regime autoritário e a uma democracia. São 6 milhões de brasileiros aproximadamente, mas muito localizados, com preferências muito intensas.

BBC News Brasil – E quais são os pontos de intersecção desses grupos?

Nunes – O primeiro grande ponto de unidade é a fé. O brasileiro acredita muito em Deus, independentemente da sua religião. O Brasil tem uma diversidade religiosa grande. Você tem 50% de católicos, 30% aproximadamente de evangélicos, 15% que dizem que não tem religião, outros 5% que se misturam entre espíritas, budistas e religiões de matriz africana indígenas. Mas, independentemente da religião, muita fé, muita crença e isso une todos esses segmentos e família.

O brasileiro, independentemente da sua visão política, gosta da família, sabe que a família é importante. O sonho é dar orgulho para os pais e cuidar dos filhos tem uma dimensão importante nisso. E aí acho que a grande descoberta do livro é que uma nova família, uma família com outras configurações. O que define família para o brasileiro é o amor, mais do que o laço sanguíneo.

Acho isso muito importante para explicar aquilo que nos une, independentemente da visão de mundo que a gente tem.

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"O brasileiro acredita muito em Deus, independentemente da sua religião", diz Nunes.

BBC News Brasil - Sobre o grupo do agro, é realmente um grupo homogêneo? Dá para dizer que "o agro pensa assim"?

Nunes - Dá para falar. O agro se transformou no terceiro maior grupo de identidade do Brasil. Os conservadores cristãos em primeiro lugar, 27%, a classe D e E em segundo, 23%, e o terceiro maior grupo, 13%, o agro.

Por que a gente unificou esse grupo? Porque ele tem alguns valores muito fundamentais. Primeiro, todo mundo é fã do Gusttavo Lima. Segundo, é um grupo homogêneo do ponto de vista da ligação com a terra, dessa visão que transcendeu a parte econômica e virou simbólica.

O agro hoje tem um modo de se comportar, tem consumo muito parecido. O tipo de carro que ele compra, o tipo de comida que ele gosta, o churrasco é muito importante, o tipo de bebida, a cerveja.

Além do consumo, eles têm valores muito tradicionais, muito mais fortes. E aí independe se é o pequeno, médio ou grande produtor.

É claro que tem variações econômicas nesses segmentos, mas no geral, a visão de mundo é muito homogênea e por isso a gente reuniu eles estatisticamente no mesmo grupo.

BBC News Brasil – Você diz que os jovens das classes D e E são uma incógnita sobre como vão votar no ano que vem. Esse grupo é formado por filhos de pessoas beneficiadas por programas sociais, são filhos do Prouni. Por que existe uma incógnita em relação à preferência política?

Nunes - Esse é um tema que eu considero muito importante para entender o Brasil de hoje.

Os empreendedores individuais jovens, são filhos da classe D e E, viram os seus pais, fundamentalmente suas mães, beneficiadas de programas do governo nos últimos 20 anos, viram as mães conquistarem casa, viram as mães serem valorizadas pelo aumento do salário mínimo, pela carteira assinada. E eles, em algum momento, tiveram o sonho de mudar de vida, de subir socialmente, e isso acabou não acontecendo.

Esse público de empreendedor individual tem uma frustração muito grande, porque a ele foi prometida uma melhora depois da universidade e essa grande expectativa produziu neles uma frustração gigantesca.

Essa frustração, para alguns, acabou se transformando em ressentimento. E esse ressentimento afasta esse público que viu seus pais beneficiários de programas e colocou eles num lugar diferente político. Eles acabaram passando a acreditar que o Estado não é o solucionador do problema.

Eles passaram a ter uma visão muito mais empreendedora, passaram a acreditar em valores muito menos ligados à solução do Estado. Isso marca, de alguma maneira, a mudança de postura deles.

Acho que esse é um tema importante para 2026, quando a gente vai discutir, sem dúvida nenhuma, os grandes temas do trabalho. A escala 6x1, o transporte para chegar no trabalho, a própria dimensão do imposto sobre a renda.

Todos esses temas que estão na pauta política hoje são muito caros a esse grupo de jovens que tem uma cabeça muito mais aberta na média, mas que, do ponto de vista da vida pessoal, acabou convivendo com muita frustração.

BBC News Brasil – Você aponta características muito próprias de cada grupo. Me chamou a atenção que os militantes da esquerda têm mais satisfação com a vida. De onde vem isso?

Nunes - Isso vem do que a gente chama nos estudos que eu faço na Quaest de calcificação política. Esse público dos militantes de esquerda, eu acompanhei muito de perto na transição de 2022 para 2023.

E o que a gente encontrou é incrível. Quando a gente perguntava para esse público antes da eleição como é que está a sua vida? As pessoas desse grupo diziam a vida não está boa, a economia vai mal no Brasil, as coisas não estão legais.

Bastou o Lula vencer a eleição de 2022 para eles, de um mês para o outro, mudarem de opinião a respeito do que estava acontecendo com eles. Eles passaram a dizer, dali em diante, que agora a economia está indo bem, as coisas vão dar certo.

Ou seja, em alguma medida, esse é o público mais ideológico à esquerda. Esse militante de esquerda é aquele que, no fundo, olha para o mundo sobre o filtro da polarização. Então, em alguma medida, tudo que o atual governo faz está certo, está correto para esse grupo. E tudo que o antigo governo faz está errado.

A mesma coisa acontece do outro lado. Quando você pergunta para a extrema direita o que está acontecendo no Brasil agora? O efeito é devastador, está tudo errado, nada funciona, está tudo muito ruim. Enquanto no governo anterior, estava tudo certo. Ou seja, se a gente quiser entender um pedaço dos valores brasileiros da interpretação de opinião do Brasil, a gente tem que, de alguma maneira, descontar essas paixões e ódios que acabam marcando os polos.

BBC News Brasil - De maneira prática, como o candidato de 2026 deve olhar para essa pesquisa?

Nunes - Eu acho que os candidatos para presidente, para governador, para deputado, senador, eles vão encontrar um Brasil muito diverso, muito complexo e que tem algumas especificidades, como a gente falou, alguns aspectos que são de união, de unidade e outros que são de divisão muito clara.

O Brasil, por exemplo, é um país punitivista do ponto de vista da violência, um país que está preocupado com a segurança pública. As mulheres, em especial, estão com muito medo de andar nas ruas das grandes cidades. Chega a 70% o percentual de brasileiros que têm medo de andar nas ruas das capitais. Esse é um número muito forte na minha avaliação e, como eu disse, em especial nas mulheres.

Mas nós não somos um país armamentista. A gente não acredita que a solução para os problemas da violência está em armar a população de maneira generalizada.

Acho que esse é um bom exemplo dessa nuance de como o Brasil é complexo. Se a solução é punir, é punir pelo Estado, pela ordem, pela polícia, não armando a população como um todo.

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Dentre os nove grupos identitários perfilados na pesquisa, o agro representa 13% dos brasileiros

BBC News Brasil – Já que você falou nas mulheres, o Brasil das brasileiras é mais progressista?

Nunes - O Brasil das brasileiras é bem mais progressista. Isso vem acontecendo há algum tempo. Eu acompanho os resultados eleitorais desde 1998. De lá para cá, ficou cada vez mais evidente a diferença no voto de homens e de mulheres.

Os homens, cada vez mais votando à direita. As mulheres, cada vez mais votando à esquerda. E no livro eu faço essa discussão, porque as mulheres hoje são o grande motor das transformações de valores no Brasil. São elas que sofrem, em alguma medida, com a discriminação, o machismo, o preconceito.

Mas também são elas que estão se transformando cada vez mais em protagonistas no mercado de trabalho, dentro dos lares. O IBGE acabou de mostrar isso, metade do Brasil é chefiado por mulheres.

Isso é uma mudança que tem impacto sobre valores muito importantes. E como a gente falou aqui, isso acaba impactando também o voto. Eu não consigo mais olhar para a eleição no Brasil sem fazer essa diferenciação entre o comportamento das mulheres e dos homens.

Ao que parece, quanto mais protagonismo elas ganham, mais força elas têm no processo político, mais os homens se ressentem e acabam puxando um grau de conservadorismo maior.

BBC News Brasil - Então, quanto mais elas são progressistas, mais eles são conservadores?

Nunes - Essa é uma reação muito interessante que está acontecendo no mundo inteiro, não só no Brasil. O que chama atenção aqui é que, se as mulheres em geral são mais progressistas e os homens mais conservadores, na geração ponto com, que são aqueles brasileiros que nasceram depois de 2000, essa diferença não aparece.

É como se as meninas estivessem puxando os meninos para uma visão de mais tolerância, menos preconceituosa, de menos discriminação. E, claro, isso pode ser decisivo para a gente pensar o Brasil daqui para frente.

BBC News Brasil - As mulheres avançam no espaço público, mas, ao mesmo tempo, 66% dizem tolerar homens gays, desde que não sejam afeminados. Que forças são essas?

Nunes - Para os homens, a gente tem uma visão ainda muito tradicional. O homem tem que ser sinônimo de força, proteção, trabalho, dimensões ainda muito conservadoras e tradicionais.

No caso das mulheres, o que a gente está vendo é que uma parte do papel que a mulher tem que desempenhar ainda é o cuidado. Espera-se que ela cuide da casa, dos filhos, da família. Mas já se espera, no caso delas, que elas também participem como protagonistas do mercado de trabalho.

E o mais impressionante, há uma palavra que define bem o que se espera das mulheres no Brasil: coragem.

Coragem ao quadrado. Para andar na rua, coragem para vivenciar a violência que elas, de alguma maneira, estão habituadas — há um percentual enorme de mulheres que dizem no livro que se sentem ou já se sentiram discriminadas de alguma forma — mas também coragem para enfrentar os desafios e as mudanças do mercado de trabalho do mundo público.

Então a mulher tem que ter cuidado, tem que trabalhar e tem que ter coragem ao quadrado.

BBC News Brasil – Essa coragem aparece nas respostas das mulheres, dos homens, ou de ambos?

Nunes - De ambos. As mulheres dizem em um nível maior o reconhecimento dessa coragem por vivenciar esse dia a dia, por um lado, de violência, mas também de ter que mudar o mercado de trabalho.

Mas os homens já reconhecem que também é preciso que elas tenham coragem, porque não é simples.

Um dado curiosíssimo do livro é que aproximadamente 40% das mulheres dizem que já se sentiram discriminadas, e quase metade dos homens dizem que já viram mulheres sendo discriminadas.

Ou seja, não é um tema que ficou apenas no ambiente feminino, mas já furou essa bolha e conseguiu chegar também na visão desses homens, principalmente os mais jovens.

BBC News Brasil - Pensando nas eleições, a partir dos perfis que você traçou, tem espaço para uma terceira via em 2026?

Nunes - Eu acho que boa parte dos brasileiros está vivendo o que eu chamo de o trauma da terceira via.

É verdade que existe espaço e demanda social para que a terceira via apareça. Eu me lembro com muita clareza as pesquisas que fazia na Quaest em 2021, em que a gente perguntava para os brasileiros o que você prefere? Que o Lula vença, que o Bolsonaro vença ou que alguém que não seja nem Lula, nem Bolsonaro, vença? O percentual de brasileiros que preferiam nem um, nem outro, era muito superior aos que preferiam Lula ou Bolsonaro.

O problema é o sistema eleitoral brasileiro. E eu falo "problema" aqui, sem nenhum julgamento de valor, mas analisando o cenário. Quando a gente tem um jogo que é jogado em dois turnos, o eleitor é chamado, de alguma maneira, a fazer um movimento estratégico.

Ele olha para o jogo e fala assim "olha, eu prefiro o candidato tal, mas ele tem chance mesmo de chegar no segundo turno para derrotar aquele outro nome que eu gosto menos?". Quando esse raciocínio é feito, o que acaba acontecendo é que os dois polos continuam conseguindo atrair o voto desse eleitor da terceira via, e ele acaba, por medo de que o outro vença, migrando para os polos.

Essa dinâmica entre a demanda pela terceira via, e a oferta de um sistema eleitoral polarizado, acaba frustrando o desejo de quem, como muitos brasileiros, torcem pela terceira via, e vai para o voto útil.

BBC News Brasil – Um dos perfis que você traça no livro é o do brasileiro empreendedor e conservador, muito parecido com o do Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo em 2024. É desse perfil que veio a força dele?

Nunes – Com certeza. Acho que a eleição de 2024 acabou revelando de maneira muito explícita esse perfil de eleitor de renda baixa, mas que já não acredita tanto que só o Estado vai resolver o seu problema. Ele já reconhece que só pode contar com ele mesmo.

Há um percentual grande de brasileiros que não confia nos outros, que não quer depender de ninguém, que acha que ninguém vai ajudá-lo a subir na vida.

Até porque, no Brasil a gente acredita muito pouco em mobilidade social. O brasileiro acha que, para crescer na vida, ou você tem que ter sorte, que é o que acontece com cantores, jogadores de futebol, ou você tem que ter sido nascido em família rica. Então a gente não acredita em mobilidade.

Paulo Pinto/Agência Brasil
"A escala 6x1 é um debate que, na minha visão, vai ser fundamental para a eleição de 26", diz Nunes

BBC News Brasil – Mas não acredita em meritocracia?

Nunes - A gente acredita num outro tipo de meritocracia, que é aquela meritocracia individual. Você faz por merecer, você luta para dar certo, você corre atrás dos seus sonhos.

E é exatamente porque acredita nesse ideal, que surge espaço para que candidatos como o Paulo Marçal tenham força, de alguma maneira, de mobilizar, encantar, engajar esse público jovem que acredita em empreendedorismo, que acredita no mérito individual, não na dinâmica de que a sociedade vai dar espaço justo para o mérito.

E isso, obviamente, está mudando o mercado de trabalho. É onde surgem, por exemplo, as críticas à CLT, e abre esse espaço para o empreendedor individual, que, como eu falei, começa a ter um número expressivo no país.

BBC News Brasil - Mas esse movimento de crítica à CLT é sustentável?

Nunes - Pouca gente se deu conta de que a eleição de 2026 vai ser uma eleição sobre o mercado de trabalho.

O Brasil está cansado. As pessoas estão tendo que fazer mais de um trabalho para dar conta das suas rendas individuais, das suas despesas. O aumento da renda no Brasil não significou que as pessoas hoje conseguem ter um poder de compra que dê a elas o que elas sonham, desejam. Em alguma medida, esse sonho e desejo ficou quase inatingível, porque nas redes sociais, hoje você tem acesso àquilo que é inimaginável no mundo inteiro.

As pessoas estão muito cansadas, trabalhando demais, frustradas e querendo uma vida mais flexível. Por isso, a escala 6x1 é um debate que, na minha visão, vai ser fundamental para a eleição de 26.

Para as mulheres que, como eu disse aqui, têm que cuidar da casa, cuidar da família, ir trabalhar, flexibilidade é importantíssimo. No caso dos homens, que na visão dos brasileiros, têm que ter força, poder, proteção, para eles a flexibilidade é importante também, para quê? Para conseguir ganhar mais dinheiro.

Então, a dinâmica do mercado de trabalho, para mim, vai ser um dos temas centrais da eleição do ano que vem. E o que a gente vai discutir é até onde a gente quer ir como sociedade, com o debate da proteção social, porque os brasileiros não querem perder proteção social, mas querem ganhar flexibilidade.

É no debate entre a flexibilidade e a proteção social, que, na minha visão, a gente vai encontrar a construção de uma maioria eleitoral.

BBC News Brasil - E vai ter espaço para um Pablo Marçal, ou outro outsider em 2026?

Nunes - Discutir o espaço político é, em alguma medida, misturar demanda e oferta. A apresentação da candidatura tem que acontecer e você tem que ter demanda eleitoral.

Nas pesquisas que eu tenho feito na Quaest, eu vejo, sim, espaço para um outsider. Exatamente por esse cansaço, exatamente por essa fadiga da visão política.

Hoje a gente tem o Congresso Nacional de alguma maneira sofrendo ataques diretos pela sociedade brasileira, que inclusive se manifesta, vai às ruas por conta disso, por uma visão de que há uma blindagem própria.

Tudo isso alimenta, em grande medida, o sentimento de outsider, sentimento esse que também é alimentado pelo fato de que as pessoas, mesmo reconhecendo que a economia melhorou, não acham que a economia melhorou para elas. Então, isso, obviamente, dá espaço para o salvador da pátria.

A questão é saber se o sistema político vai permitir que isso aconteça, porque hoje você tem um número menor de partidos políticos, partidos mais coordenados, e se eles não abrirem espaço para esse outsider, ele simplesmente não vira uma opção eleitoral.

BBC News Brasil – Você disse em uma entrevista que se os brasileiros forem às urnas inseguros, eles vão votar contra o Lula. Por quê?

Nunes - Primeiro, porque a insegurança é o principal ativo do medo e da necessidade de mudança. Quem vota inseguro é quem está olhando para a dinâmica da violência, da insegurança pública, está buscando um nível de punitivismo e um nível de ação do Estado mais violento do que eu diria proposto por este governo e por partidos de esquerda de maneira mais geral.

Quanto mais inseguro o eleitor for, mais ele vai buscar outro tipo de postura, uma postura mais forte, de mais combate a essa dinâmica. A dúvida que eu tenho é se este será o sentimento final mais importante para 2026.

O que eu tenho certeza é que se for ativado o eleitor nesses termos, há uma probabilidade enorme de que ele vote contra esse status quo em busca de uma mudança mais punitivista e não armamentista.

BBC News Brasil - Independentemente se ele, o eleitor, for mais progressista?

Nunes - Claro que eleitores mais progressistas tendem a também ter menos insegurança. Eles acabam sendo mais autoexpressivos, se permitem viver experiências, inclusive públicas, menos preocupadas com o tema da violência.

Mas o que é curioso é que mesmo na base eleitoral do Lula, onde ele é mais forte, que é a região Nordeste, a preocupação com a violência chegou em níveis muito altos. Eu diria então que não é mais uma questão de visão ideológica, é uma preocupação individual de como o indivíduo trata o seu medo mais primitivo, que é de sobrevivência, dos seus filhos poderem voltar para casa, das suas filhas mulheres sofrerem violência dentro e fora de casa.

Eu acho que essa é uma dinâmica que acaba ultrapassando os limites ideológicos.

BBC News Brasil - A gente falou aqui de violência, de mercado de trabalho. O que mais estará na pauta da eleição do próximo ano?

Nunes - O supermercado.

É o supermercado que acaba ajudando a gente a entender a dinâmica da continuidade ou da mudança dos governos.

Boa parte da renda dos brasileiros é utilizada para comprar alimentos. Isso é ainda mais forte quanto mais pobre se é. Então, se a inflação de alimentos está baixa, está controlada, se o consumo de alimentos está acessível aos brasileiros, eles tendem a reconhecer que o governo está indo bem e que, portanto, sobra mais dinheiro para fazer outras coisas, pagar dívidas, e, em alguma medida, ter algum lazer, comprar algum produto necessário para casa.

Quando os preços dos alimentos estão altos, o que sobra da renda é muito pouco, o que acaba gerando o mau-humor eleitoral.

Então eu olharia para o mercado de trabalho, olharia para a violência, mas eu também olharia para a dinâmica dos alimentos nos supermercados.

BBC News Brasil - Qual é o papel das redes sociais nesses perfis? Elas moldaram algum perfil de brasileiro?

Nunes - Eu só consigo entender a existência dessas nove bolhas porque elas se informam de maneira customizada, acessam informação de lugares específicos e, de alguma maneira, elas buscam confirmar os vieses constituídos nas identidades e valores que cada uma dessas bolhas tem.

As redes são fundamentais para entender esse novo processo de disputa informacional. Isso acaba reafirmando a continuidade e a constituição dessas bolhas. Mais do que mudar de lado ou mudar de bolha, o que as redes fazem é fazer com que a gente se feche cada vez mais dentro dessa nossa tribo.

BBC News Brasil – E nesse aspecto, tem algum ponto em comum?

Nunes - A plataforma que os brasileiros mais utilizam é o WhatsApp. Em segundo lugar, o YouTube, onde as pessoas mais buscam informação. Ali, elas aprendem não só o que fazer, mas buscam informação que, de alguma maneira, ajude elas a tomar a decisão.

E ali estão os principais cortes que ajudam as pessoas a buscar informação também.

Essas duas plataformas fazem parte hoje do dia a dia dos brasileiros. Assim como a TV, os jornais, essa mídia tradicional que continua, como eu disse, paralela, ali, influenciando, engajando e mobilizando o Brasil.

BBC News Brasil – E qual o nível de informação do brasileiro?

Nunes - Eu aproveitei esse estudo para tentar, de alguma maneira, diagnosticar o grau de conhecimento factual dos brasileiros. Fiz quatro perguntas básicas sobre economia, desemprego, segurança e saúde. Temas factuais, você não precisava ter formação acadêmica, ter lido muito livro. Bastava acompanhar o que estava acontecendo no Brasil, que você saberia responder essas questões.

E o que a gente encontrou? 42% dos brasileiros não acertaram nenhuma dessas quatro questões. Quase metade dos brasileiros não tinha ideia do que estava acontecendo à sua volta.

Esse dado é triste, mas eu acho que, de alguma maneira, a gente reconhece isso exatamente pela falta da educação.

Mas a segunda questão é mais importante do que essa. Perguntei para todos esses quase 10 mil brasileiros quantas dessas perguntas eles achavam que tinham acertado. E 70% dos brasileiros superestima o que sabe.

Ou seja, nós estamos falando de uma população que vai para o embate público, que vai para o debate sobre política, sobre economia, sobre saúde pública, achando que sabe mais do que sabe.

Por um lado, reforça neles a não necessidade de estudar mais, de procurar informação, de sair da bolha, o que é terrível. E, por outro lado, acaba produzindo conflitos sociais muito grandes, porque você está sempre olhando para o outro, não olhando para o espelho, mas olhando para o outro como um adversário, como um inimigo, como alguém que não sabe nada e você sabe.

Tudo isso produz o que eu chamo a ilusão do conhecimento. É algo que eu espero que esse livro ajude a de alguma maneira combater. Quanto mais a gente investe em educação e quanto mais a gente investe em jornalismo profissional e transforma isso em um hábito do Brasil, menor é a ilusão do conhecimento no país.

Esse livro traz uma contribuição para a gente pensar o Brasil de 26, com eleições, com tanta informação que vai circular, com pensamento mais crítico, com a maior necessidade de confiar na informação qualificada, naquela informação profissional jornalística que é tão importante.

E junto com isso, a gente discutir a necessidade, a importância de mais e melhor educação no Brasil.