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Dandara e a Fortaleza descompensada

17:00 | 11/03/2017
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Vivo dizendo a um amigo que não me dou com a palavra “tolerância”. Quase não faz parte do dicionário de minha fala e pouco uso para construir algum texto. Porque “tolerar” tem um abismo muito grande e acho traiçoeira.

Pena falar assim de uma palavra. Desconfiar dela e, reconheço, discriminá-la ao procurar evitá-la no dizer e no escrever. Nenhuma palavra gosta de ser esquecida, rejeitada ou sucumbida da possibilidade de existir.

Mas explico. “Tolerar” soa como ser obrigado a conviver. Ter de sentar ao lado, mas com toda repulsa e nojo enrustidos. Tanto que a coitada desta palavra, em suas variações, é useira na escrita da violência e da solução policialesca.

“Tolerância zero pra vagabundagem”. Também não me conforto com o verbete “vagabundo”. Nem na canção nem com Chaplin. Muito menos quando um secretário da Segurança a usa para delimitar territórios.

Preferível, em vez de “tolerar”, é arriscar assumir o lugar do outro. Dificílimo. Mas uma janela possível para deixar de ser arrogante e entender que a Terra não tem só uma cara, não se pinta só de uma cor e não é apenas macho ou fêmea.

A morte da travesti Dandara desenha mais ou menos isso. Desde pequenos, nos ensinaram que o que for possibilidade, além de homem e mulher, é aberração. E se um macho não se casar com uma fêmea é o fim do mundo e viraremos pedras de sal.

Talvez Dandara vire nome de uma lei, assim feito Penha. Uma legislação que, na gravidade e na dor extrema, vá obrigar as escolas, a rua e dentro de casa a conversarem sobre o inconversável com crianças e adolescentes. E não precisaria ser assim. Nem morrer Dandara nem ferir, pra sempre, Penha.

Natural seria a escola, a rua e nós em casa deixarmos de trancar no armário o que incomoda e, no estrelar dos ovos, é tão simples. Mostrar que não é coisa do outro mundo um menino se desenhar menina ou uma menina querer casar com a professora.


Não seria o “aceita que dói menos ou o tolera porque não tem jeito...” Não, não. Não seria “o antes uma boa morte...”. Não é o “fazer o quê?”. Não seria “ele é baitola, mas é meu amigo...”.

Se tivéssemos repetido menos que viado é coisa pra se curar na reza ou peia, talvez cinco ou mais homens criados por mulheres não tivessem tanta sanha pra espancar e linchar Dandara com tamanha macheza. Ela e uma infinidade de gente.

Dandara também é uma síntese da Cidade que se deixou criar tribunais de justiçamento correndo solto na Aldeia e apavorando a Aldeota. Fortalecido mais ainda com a “pacificação” de quadrilhas de homens e meninos num Estado ausente.

Na web “tá chei”. Cheia de vídeos de quem foi julgado e levou um tiro na perna como sentença. De quem foi morta, em Jericoacoara, porque afanou o dinheiro da coisa. De quem perdeu dedos pra não desobedecer a lei desse universo paralelo...

E nós, que aqui estamos na Aldeota, disputamos que a solução é reduzir a idade penal ou que Dandara morreu “apenas” por ódio às bichas... Ou que um crime contra um aldeotino merece mais visibilidade do que as execuções em bairros pebas...

Nenhum menino ou menina nasce bandido ou tomado de preconceito e ódio. A história, talvez, seja o que nos falta ou nos inunda (desproporcionalmente) de proteção e possibilidades de um lado e outro na Cidade descompensada.
 

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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