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Rotas Performativas: "Vândala, Margina e Mulher - Travessias Batom" e "(Des)Ordem e Re(Pro)Gresso"

13:44 | Mar. 23, 2018
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Vândala, Margina e Mulher - Travessias Batom

Em torno das nove horas da manhã, cheguei no cruzamento das ruas Coronel Ferraz e Visconde de Sabóia, vi um prédio bastante interessante do ponto de vista histórico e arquitetônico, escutei algumas crianças correndo, andei até o portão com uma faixa da Unidade Classista, conheci um homem que me deu boas-vindas.

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Entrei no prédio a procura de Maruska, ali seria o ponto de encontro para a sua performance. Não a encontrei, entretanto, tive o prazer de conhecer muitas pessoas que me receberam de braços abertos e, entre uma conversa e outra, fiquei sabendo que hoje era um dia importante para aquelas pessoas, porque no período da tarde haveria uma reunião com representantes do Estado para negociar a situação da ocupação. Antes da artista chegar, descobri também que aquele prédio ocupado foi uma escola, seu nome era Nossa Senhora de Aparecida e Jesus, Maria e José, e estava abandonado a cerca de quinze anos. Ele foi doado para a Prefeitura de Fortaleza pela Arquidiocese de Fortaleza e faz parte do primeiro tombamento de um conjunto arquitetônico aprovado pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza (Comphic); o conjunto compreende imóveis que datam do fim do século XIX e início do século XX, são eles os prédios do Colégio Imaculada Conceição, da Igreja do Pequeno Grande, da Escola Jesus, Maria e José e da Escola Justiniano de Serpa, localizados no entorno da Praça Filgueiras de Melo.

O grupo Ocupação Gregório Bezerra, da Unidade Classista Ceará, decidiu invadir o edifício da antiga escola após a vitória deles na retomada das obras da escola municipal no bairro Conjunto Ceará, tendo em vista o impasse instaurado pelo Estado na liberação de um local provisório destinado a moradia das famílias. Espero firmemente que a Prefeitura de Fortaleza e a Habitafor apresentem, rapidamente, uma solução para o problema habitacional destas famílias, para que elas tenham acesso à moradia de qualidade. E, ainda, reforço que uma reforma urbana é sem dúvida urgente, não apenas no Ceará, mas no nosso país como um todo.

As pautas são muitas na luta por melhores condições de vida para a população e a performance urbana de hoje destacou o direito das mulheres no contexto da Ocupação Gregório Bezerra. A ideia foi unir as forças com as mulheres da ocupação e caminhar nas ruas do seu entorno, espaço repleto de armazéns e lojas, no Centro de Fortaleza. A performer fez o chamamento às mulheres, expos a sua bandeira e os batons, além de todo o material para a ação, cobriu o rosto com um lenço e saiu para a rua para deixar as suas marcas.

Eu e outras mulheres a seguimos, de perto, de longe, sempre atentas para a recepção das pessoas, entre eles os trabalhadores dos armazéns, das lojas e os transeuntes. O que eu pude constatar foi que a maior interferência da performance se deu pelo corpo da performer, de maiô, máscara e bandeira, naquele local em que transitavam na sua maioria homens. As poucas mulheres que caminhavam por ali, em sua maioria, se aproximavam para dizer que apoiavam a iniciativa. Os homens, em contrapartida, ficaram irritados, indiferentes ou caçoavam da performer. Apenas um homem se mostrou solidário e parabenizou o trabalho realizado pela artista junto com a ocupação, o que me levou a pensar que o espaço urbano ainda é um território demarcado pelo poder masculino.

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(Des)Ordem e Re(Pro)Gresso

Mesmo nesses tempos duros, marcados por tantos medos e descompassos, as praças ainda (re)existem. No sol a pino, a Praça do Ferreira, um marco histórico e patrimonial de Fortaleza, pulsa vida. Muitas pessoas transitam de um lado a outro, outros tantos descansam nos extensos bancos da praça. Um senhor alimenta os pombos, outro, com uma caixa de som acoplada na bicicleta faz seu show, outro, faz uma espécie de vitrine viva na porta da loja Riachuelo. Um homem indígena vende produtos de cura em uma pequena barraca em uma ponta da praça, na outra, uma mulher caracterizada de baiana vende acarajés. Um homem de pés descalços, limpa os bancos da praça com pedaços de uma bandeira do Brasil. A paisagem é borrão de gente e coisa, em recortes no tempo-espaço. São muitas histórias possíveis.

Entendendo que o espaço é uma dimensão implícita que molda nossas cosmologias estruturantes, faz-se fundamental percebê-lo pelo e no corpo, como a esfera de possibilidade da existência da multiplicidade, no sentido da pluralidade contemporânea, como a esfera na qual distintas trajetórias coexistem. Na Praça do Ferreira, muita gente tece tecissitura de espaço, em um fazer viver que pulula diferença. As processualidades corporais pertinentes ao próprio movimento da vida revelam, portanto, a coexistência da heterogeneidade.

A bandeira do Brasil, antes em pedaços, agora está sendo costurada pelo homem que, minutos antes, limpava com a mesma a própria praça. A ação é quase invisível perante tudo o que está e se constrói nesse agora que urge. Porém, ela não esconde a atitude da propositiva, mesmo nesses tempos duros, marcados por tantos medos e descompassos. O que se costura, ali, com linhas vermelhas, é um Brasil possível. Depois de costurada a bandeira, inicia-se um processo de bordado. Aproximo-me cada vez mais e percebo que o homem performador canta baixinho um hino, talvez, o hino da bandeira e, por mais introspectivo que aquilo possa parecer, também carrega uma subjetividade especializada de sentido.

Estou na capital do Ceará observando Lívio do Sertão, o homem que agora borda letras tortas. Quem é esse homem-menino-sertanejo, o que queres gritar nessa poética espacial tão íntima e ínfima? Alguns dizem se tratar de loucura, nessa clausura do fora que urge a homogeneização dos modos de vida. Ordem! Ordem! Progresso! Progresso! Processo. Estamos tratando de diferença, mas estamos tratando também de um jeito de se estar na diferença. Afinal, tanta performatividade cabe numa praça, mas um tipo de performatividade já instaurada em um sistema de registros.

Então, Lívio-homem-menino-sertanejo não reproduz nada parecido com o rotineiramente vivido na intensidade da praça, todo aquele movimento já é o previsível de se estar. Assim, Lívio-homem-menino-sertanejo desloca o olhar da retina de quem olha. Aos poucos, um nome próprio se desenha naquele bordado, mas, antes que a bandeira possa ser amarrada em uma árvore para assim balançar e dançar, ela precisa de sabão e água. Lava , lava, lava um Brasil de sentidos. (Des)Ordem! Re(Pro)gresso! Mariele vive, faz viver em nós o sonho de que é preciso acreditar e lutar e insistir em acreditar e lutar. Não se trata, portanto, de um nome próprio, representável, identificável, mas de uma individuação operando por intensidades. Mariele intensifica politicas em nós! No presente espacial, o que somos é realmente o que fazemos.

 

Marcelle Louzada e Pati Bertucci

Artistas e pesquisadoras

 

 

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