"'Deserto Particular' mostra um outro Brasil', diz cineasta

Autor DW Tipo Notícia

Premiado em Veneza, filme escolhido para representar o Brasil no Oscar chega aos cinemas. À DW, diretor Aly Muritiba afirma que levou ao exterior imagem de que o país não é apenas discurso de ódio e queima da Amazônia.O filme Deserto Particular, selecionado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa por uma vaga entre os indicados ao Oscar 2022, estreia nesta quinta-feira (25/11) no país. Trata-se de um mergulho na complexidade do Brasil profundo, revelado pelo desenrolar de uma história de amor. A trama se passa em dois contextos bastante distintos entre si. Na cidade de Curitiba, Daniel, um policial afastado do trabalho, vive a angústia de ter cometido um erro do qual se arrepende. Quando a situação fica insuportável, ele se joga na estrada rumo ao sertão da Bahia, à procura da misteriosa Sara, que só conhece pelo celular. Nessa jornada, o policial descobre novos cenários e algo ainda mais precioso: sua fragilidade. "Tem sido muito bonito falar de um outro Brasil para os gringos agora", afirma o diretor do longa, Aly Muritiba, em entrevista à DW Brasil. "O Brasil de que se tem falado no exterior é o do discurso de ódio, que queima a Amazônia, com altas taxas de desemprego. Eu chego ao exterior com a imagem de outro Brasil, que também é habitado por conservadores, mas é tolerante; que é habitado por crenças neopentecostais que acreditam em curas impossíveis, mas que também é capaz de amar e de cuidar", diz. E os "gringos" parecem gostar do que veem. Neste ano, Deserto Particular venceu o prêmio do público no Festival de Veneza, sendo aplaudido de pé por dez minutos. Na seleção brasileira para o Oscar, o longa desbancou o favorito 7 Carcereiros, produção da Netflix. Deserto Particular disputa uma vaga entre os cinco indicados ao Oscar na categoria Melhor Filme Internacional. Uma lista de pré-selecionados deve sair no dia 21 de dezembro, e a lista final, em 8 de fevereiro. A premiação está marcada para 27 de março. A forma sensível com que Muritiba apresenta os conflitos internos dos personagens dobra o espectador. É quase impossível não sentir compaixão com o policial, que toma consciência de seu próprio aprisionamento à medida que a narrativa evolui. A masculinidade tóxica e seus impactos são tema recorrente no trabalho do cineasta. "Além das máculas que você causa nas pessoas que vão cruzando seu caminho – e elas são muitas, pesadas e dolorosas –, existe um peso muito grande também para quem tem que sustentar essa máscara, para quem tem que bancar o tempo inteiro esse comportamento alfa, possessivo", diz Muritiba. O diretor de Deserto Particular acredita que a capacidade de criar empatia com o outro pode recriar laços rompidos pela divisão política do país. Antes de se estabelecer no mercado audiovisual, Muritiba trabalhou como carcereiro por sete anos. "Isso foi essencial para eu me formar um melhor contador de histórias, perdidamente apaixonado pelos seus personagens. Sou completamente capaz de respeitar um policial militar agressor, assim como uma avó evangélica neopentecostal que manda o neto embora, porque eu entendo que aquele mandar embora é também um gesto de amor, de proteção", reflete. DW Brasil: Como você recebeu a notícia da seleção de Deserto Particular para representar o Brasil no Oscar? Aly Muritiba: Eu acreditava muito no filme, tanto é que o inscrevemos para a corrida do Oscar. Mas todas as pessoas, incluindo jornalistas, acreditavam em um outro filme (7 prisioneiros) e falavam nele. É um filme bem bacana também, com um grande estúdio por trás e tudo mais. Quando eu escrevi Deserto Particular, não sabia que esse segundo filme ia se inscrever, porque era incerto se eles iam lançar o filme neste ano. Eu pensei: "Se esse filme não se inscrever, talvez eu tenha chance". Porque Deserto Particular esteve no Festival de Veneza, ganhou prêmio, é um filme que tem emocionado as pessoas. Quando eu soube que ele estava inscrito e todos começaram a dizer que a pedra já estava cantada, falei: "Paciência, tudo bem, é um ótimo filme para representar o Brasil também, está tudo certo." Foi diferente de outros períodos em que escolheram filmes muito estranhos, por meio de uma comissão indicada pelo Ministério da Cultura. Tinha essa coisa meio bizarra no governo Michel Temer. Neste ano, era um processo com bastante lisura, feito por membros da academia, gente muito ilibada, então eu estava bem tranquilo: "Se não rolar o Deserto e rolar esse outro filme, vai ser do caralho porque é um filme bom também." Eu estava trabalhando no sertão da Paraíba e, no final do almoço, quando enfim consegui me conectar à internet, tinha várias chamadas perdidas da assessora de imprensa. Eu liguei, e ela falou: "Escolheram o Deserto!". Eu disse "Uau!" Fiquei surpreso, fiquei feliz, depois fiquei amedrontado. Mas essa pré-indicação do Brasil foi muito bem-vinda, pois eu estava às vésperas de lançar o filme. Assim, mais gente vai assistir. E como foi a recepção ao filme em Veneza? Foi muito bonita. Veneza foi a primeira experiência coletiva em sala de cinema para muita gente no pós-pandemia, fim de pandemia, então as pessoas estavam muito felizes de estarem voltando à sala de cinema e acho que muito felizes de voltarem à sala de cinema vendo um filme como esse, que traz tantas emoções, tantas sensações boas. As pessoas estavam sem viajar e aí sentam para ver um filme em que o personagem viaja, estavam sem dançar e aí assistem um filme em que os personagens dançam. Então, Deserto Particular proporciona várias pequenas catarses para a audiência, e lá foi muito especial, as pessoas estavam muito gratas por estarem vendo aquele filme, o filme foi ovacionado durante um tempão. Nos dias seguintes, as pessoas me reconheciam na rua – o que é muito raro, normalmente falam com os atores – e vinham agradecer pelo filme, foi super bonito. E foi muito bonito estar falando de um Brasil, nesse momento, que não é um Brasil sobre o qual se tem falado tanto no exterior. O Brasil de que se tem falado no exterior é o do discurso de ódio, que queima a Amazônia, com altas taxas de desemprego. Eu chego ao exterior com a imagem de outro Brasil, que também é habitado por conservadores, mas é tolerante; que é habitado por crenças neopentecostais que acreditam em curas impossíveis, mas que também é capaz de amar e de cuidar. Tem sido muito bonito falar de um outro Brasil e mostrar um outro Brasil para os gringos agora. Nos últimos anos, temáticas ligadas à comunidade LGBTQIA+ têm ganho destaque no cinema nacional. Essas narrativas costumam estar situadas em centros urbanos. Seu filme, porém, desloca o olhar do público para essa vivência no sertão da Bahia. Como isso foi pensado na construção do roteiro? No primeiro argumento, escrito pelo Henrique dos Santos, meu corroteirista, a história se passava no interior do Paraná, em uma pequena cidade fronteiriça com o Paraguai. Então, sempre se passou em um grande centro urbano e em uma pequena cidade interiorana. Quando eu entrei no processo, prontamente falei para o Henrique da minha vontade de filmar na Bahia, em minha terra, e de levar essa história para lá. Isso coincidiu com o momento em que meus pais estavam se mudando para a cidade de Juazeiro, que é do lado de Sobradinho – nós somos de outra cidade, de Mairi –, e eu passei a frequentar muito aquela região do Vale do São Francisco. Achei a região deslumbrante: aquela represa, com todo o simbolismo que ela tem, tudo isso, somado à vontade que eu tinha de filmar na Bahia, fez com que eu levasse a história para lá. Assim, a viagem do Daniel (protagonista) se tornou muito mais longa do que se fosse para o interior do Paraná. Mas a história de Sara/Robson sempre foi a história de alguém pertencente à comunidade LGBTQIA+ de uma pequena cidade do interior, e isso vem muito de Henrique. Henrique é um cara gay, nascido e criado em uma cidade pequena no interior de São Paulo e depois do Paraná, então ele tinha muito disso de dizer: "Eu quero contar a história de uma bicha do interior." A sexualidade é a temática principal do filme, mas chama muita atenção a forma sutil pela qual você aborda a masculinidade tóxica e seus impactos sobre os próprios homens? Esse tema de como nós, homens criados na lógica heteronormativa, nos relacionamos com as nossas emoções é algo sobre qual eu venho refletindo na minha vida e nos meus filmes há algum tempo, pelo menos desde Para Minha Amada Morta. Tanto este como o Ferrugem são filmes protagonizados por homens heterossexuais em crise com suas emoções, seus sentimentos. No caso do Ferrugem, tendo que lidar inclusive com as consequências de seu machismo, de seu impulso opressivo. Eu fui criado e educado nessa lógica. Por sorte, eu tenho tido a ventura de, ao longo da minha vida, ir convivendo com pessoas que questionam essa lógica e têm me feito enxergar o quanto essa lógica não apenas oprime os outros, principalmente as outras mulheres, como também a mim, enquanto homem. Além das máculas que você causa nas pessoas que vão cruzando seu caminho – e elas são muitas, pesadas e dolorosas –, existe um peso muito grande também para quem tem que sustentar essa máscara, para quem tem que bancar o tempo inteiro esse comportamento alfa, possessivo. À medida que fui convivendo com pessoas que contestavam esse modo de ver e estar no mundo, isso começou a me incomodar, e fui tentando entender como isso funciona em mim. Por consequência, isso acaba sendo refletido em meus personagens. Você trabalhou durante vários anos como carcereiro. De que forma essa experiência te ajudou a criar empatia com o outro? No período que passei trabalhando na prisão, tive contato com pessoas muito diversas de mim, tanto os presos quanto os guardas. Muito embora eu tenha sido um agente penitenciário, eu vinha de uma formação humanista, formado em História na USP, então era um sujeito ligado a direitos humanos – o que, no presídio, para a maioria dos agentes penitenciários, é uma balela. Eu lidava também com os presos, que são pessoas com um background socioeducacional e econômico diferente do que eu tinha. Essa convivência foi essencial para que eu desenvolvesse uma capacidade empática muito grande e passasse a enxergar o outro em sua complexidade. E para que eu pudesse ser capaz de encontrar beleza e compreensão por trás de toda a feiura e as sombras que o outro traz e guarda. Quando você vê um cara acusado de 23 latrocínios chorar no final do dia porque sua filha de 6 anos foi embora e só vai voltar na semana seguinte; quando você lê uma carta que um preso endereça para sua esposa ou para a sua mãe – porque nós temos que ler essas cartas, existe uma censura dentro do presídio – e aquela carta está cheia de doçura, amor, cuidado, preocupação, carência e de afeto, mas você sabe que o cara que escreveu matou dez, você fala: as coisas não são simples como querem parecer que sejam. Isso foi essencial para eu me formar um melhor contador de histórias, perdidamente apaixonado pelos seus personagens. Sou completamente capaz de respeitar um policial militar agressor, assim como uma avó evangélica neopentecostal que manda o neto embora, porque eu entendo que aquele mandar embora é também um gesto de amor, de proteção. A divisão política do país fechou muitos canais de diálogo nos últimos anos. Você acredita que essa empatia pode ser a chave para os brasileiros voltarem a se entender? Sim, e acho mais: uma grande maioria de nós está disposta a isso nesse momento. Nós, hoje, somos muito diferentes do que éramos no final de 2018, ou 2019. Naquele período, independentemente de sermos conservadores ou progressistas, nós estávamos muito dispostos a impor nossa visão de mundo a outra. Isso nos gerou cansaço, separação e feridas. Nós machucamos outras pessoas, rompemos relações com amigos, com parentes que nos eram muito queridos. Isso foi nos tornando pessoas muito piores e infelizes. Somado a isso, a pandemia foi um belo período de depuração para os sobreviventes. Foi um período de muito sofrimento, perdemos muitas pessoas e seguimos sofrendo. No entanto, aqueles que sobreviveram tiveram a oportunidade muito rara na nossa história contemporânea de olhar para si, de encarar a si. Acho que nesse processo de olhar para si, se viam doentes. Eu me vi doente e sei que esse adoecer veio muito dessa jornada, dessa escalada de ódio. Durante a pandemia, eu fiz o exercício de telefonar para muita gente e pedir perdão. Isso foi me causando tantas boas sensações que me fez crer que muitos de nós estamos nesse movimento em direção à tolerância. Se não fizermos isso, a gente vai cair na barbárie. Já estivemos muito próximos da barbárie. Isso nos adoeceu, e a gente não quer adoecer. Tenho certeza que o mais radical dos conservadores prefere sorrir a chorar, prefere beijar a bater, prefere abraçar a afastar. Eu tenho certeza. A gente só precisa começar a se entender e entender quais são as nossas motivações, nossos pontos de convergência e não de divergência. Eu era um cara muito raivoso. Jesus Kid, meu outro filme, é um reflexo desse eu raivoso. E tudo bem, a raiva também é catarse, mas eu hoje estou muito mais a fim de gozar do que de bater. Autor: João Pedro Soares

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