Quem é Abdulrazak Gurnah, Nobel de Literatura 2021

Escritor tanzaniano, nascido em Zanzibar e radicado na Inglaterra, Abdulrazak Gurnah fala sobre migração e a África para além da colonização, fugindo do clichê eurocentrista.
Autor DW Tipo Notícia

Ler uma obra de Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2021, é como escutar histórias de migração nas quais a eterna mudança e a constante agitação são dadas como certas. Não é o típico conto de fadas eurocêntrico de integridade e continuidade nacional que se costuma ler. São histórias que envolvem reinventar-se, transformar-se e seguir em frente – através de países, continentes e identidades.

Zanzibar: ilha com história comovente

Nascido em Zanzibar em 1948, Abdulrazak Gurnah estava predestinado a vagar entre os mundos. A ilha onde cresceu é um verdadeiro cadinho de culturas, cujo destino foi moldado desde o século 10º pelo comércio no Oceano Índico – de escravos, especiarias e coco –, primeiro pelos persas e depois pelos árabes. Em 1861, Zanzibar se tornou um sultanato independente, e assim permaneceu até os britânicos assumirem o controle em 1890.

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Gurnah se refere a essa Zanzibar em seu segundo romance Paradise (sem edição em português). A trama se passa na costa leste da África, logo antes de as potências colonizadoras assumirem o controle. Nas histórias de Gurnah, contudo, o foco nem sempre é nos colonizadores, mas sim nas relações com o mundo árabe e indiano. Desse modo, elas corrigem uma visão que conta a história africana apenas sob a perspectiva dos colonizadores e, portanto, em relação à Europa.

Civilização independente dos europeus

Com Paradise, Gurnah ficou entre os finalistas do Prêmio Man Booker em 1994, seu maior sucesso antes do Nobel. Estudiosos da literatura viram o romance como um espelho de Coração das trevas, de Joseph Conrad, que redireciona a visão dos colonizados na África para os colonizadores.

"Quero refutar a ideia de que o colonialismo europeu levou a África Oriental da inércia à civilização. A realidade é mais complexa, porque ocorreram muitas outras interações ao longo dos séculos, que continuam até hoje", disse Gurnah em entrevista durante o lançamento de seu livro By the sea (À beira-mar) em 2001.

"Retrato o colonialismo como uma destruição – não de algo mais harmonioso ou melhor, mas de uma realidade que foi resultado de interações entre diferentes culturas", aspecto esse geralmente ignorado pela historiografia, disse Gurnah ao jornal suíço Neue Zürcher Zeitung em 2001.

Migração para a fria e úmida Inglaterra

Com By the sea e seu antecessor Admiring silence, em que um narrador em primeira pessoa não identificado retorna a Zanzibar depois de 20 anos na Inglaterra, Gurnah se volta para a migração, que também faz parte da realidade de sua vida. Em 1964, a elite árabe, que por 200 anos governara a maioria africana em Zanzibar, foi derrubada. Em meio aos massacres que se sucederam, Gurnah acabou trocando Zanzibar pela Inglaterra.

Aos 21 anos, começou a escrever em inglês e não mais em suaíli, seu idioma materno. Gurnah estudou na Inglaterra e foi professor de literatura pós-colonial na Universidade de Kent por muitos anos, até recentemente. Em suas pesquisas, voltou-se para escritores como o Nobel nigeriano Wole Soyinka e o queniano Ngugi wa Thiong'o, que também estava entre os favoritos ao Nobel de Literatura deste ano.

Escolha surpreendente do Comitê do Prêmio Nobel

Gurnah é o primeiro autor tanzaniano a receber o Prêmio Nobel e o primeiro escritor africano negro desde Wole Soyinka, premiado em 1986. Embora em grande parte desconhecido, o reconhecimento chega mais do que atrasado, comentou ao jornal britânico The Guardian Alexandra Pringle, sua editora de longa data na Bloomsbury. "Ele é um dos maiores escritores africanos vivos e ninguém nunca havia reparado nele. Isso me cortava o coração."

O próprio Gurnah não acreditou quando recebeu a ligação de Estocolmo. "Achei que fosse uma piada", consta do site do Prêmio Nobel. "Coisas desse tipo geralmente acontecem com semanas de antecedência."

Humor sutil

Thomas Brückner, tradutor dos livros de Gurnah para o alemão, valoriza sobretudo a sutileza do humor nos romances do escritor tanzaniano. "Ele escreve livros muito tranquilos, numa linguagem muito elegante, muito precisa, com uma observação muito atenta de suas personagens, de suas vidas interiores e também do que acontece em torno dessas figuras e, portanto, em torno do autor", disse à agência de notícias alemã DPA.

Brückner lamenta, porém, que de dez romances e diversos contos escritos por Gurnah, apenas cinco obras tenham sido traduzidas para o alemão – o último sendo Desertion, em 2006.

A última obra do autor faz inclusive referências à Alemanha. Lançado em 2020, Afterlives trata sobre o jovem Ilyas, que foi roubado dos pais pelas tropas alemãs, e anos depois retorna à aldeia natal para lutar contra seu próprio povo.

O mundo além do eurocentrismo

Abdulrazak Gurnah recebe o prêmio "por sua compreensão intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes", disse o secretário permanente da Academia Sueca, Mats Malm, ao justificar a escolha.

Em entrevista à Fundação Nobel, o próprio Gurnah afirmou que muitos refugiados africanos "não vêm para a Europa de mãos vazias". Entre os recém-chegados, está "muita gente talentosa e enérgica, que tem algo a oferecer".

Uma escolha que mostra, portanto, que já era hora de colocar uma outra perspectiva no centro das atenções. Dos 118 vencedores do Nobel de Literatura homenageados desde 1901, 95 vieram da Europa ou da América do Norte – mais de 80%. Gurnah é apenas o quinto africano a receber o prêmio.

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Prêmio Nobel de Literatura Abdulrazak Gurnah Histórias de migração

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