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Mais amor que história

|Guerra Fria | Com três indicações ao Oscar, filme do polonês Pawel Pawlikowski retrata história de amor entrecortada por numa época de ebulição política entre EUA e União Soviética
05:00 | Fev. 08, 2019
Autor O POVO
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Talvez seja arriscado dar a um filme o título de um período histórico. É o que faz Pawel Pawlikowski com seu Guerra Fria, sugerindo que vai abordar esse período extenso, de 1945 a 1991, quando o mundo esteve à mercê das batalhas estratégicas entre Estados Unidos e União Soviética. No entanto, mais que filme político, Guerra Fria deve ser visto como uma história de amor difícil, prejudicada pelas circunstâncias históricas. Uma espécie de Doutor Jivago, ambientado não nas estepes da Revolução Russa, mas no Leste Europeu cortado da Europa ocidental pelos acordos que puseram fim à 2ª Guerra Mundial.

Zona de influência da então União Soviética, a Polônia tornou-se stalinista, isto é, sujeita a um regime político que deixava pouco espaço às liberdades individuais. Nesse ambiente minado, se movem, se encontram e desencontram Zula (Joanna Kulig) e Wiktor (Tomasz Kot). Ele, um professor de música, ela uma promissora cantora vinda do interior e cuja voz singular e beleza estonteante a colocam em destaque entre as outras concorrentes a uma vaga na escola de música. Eles se conhecem em Varsóvia, depois perambulam por Paris, pela antiga Iugoslávia e Berlim. Nesse mundo em transe do pós-guerra, o homem e a mulher mantêm um romance igualmente tumultuado, cheio de encontros e separações, brigas e compreensão, acertos e desarranjos, como se simbolizassem, como indivíduos, o balé desencontrado das potências militares em litígio.

Conta o diretor que fez o filme em homenagem ao pai e à mãe, cujos nomes são os mesmos dos protagonistas, Zula e Wiktor. Talvez essa referência doméstica transmita calor extra à história, mas não beneficia tanto a perspectiva histórica, que parece um tanto turva. Não que Pawlikowski não cuide desse aspecto. Apenas, a costura entre o âmbito pessoal e o painel histórico resulta às vezes mal-acabada. Não falta também certo ar melodramático, que dá ao filme atmosfera meio retrô. Isso não é defeito em si, mas suga intensidade à obra.

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Por outro lado, Pawlikowski usa uma série de expedientes de direção que tentam colocar o filme num escaninho à parte. A começar pela "janela" de exibição, em formato quadrado e não panorâmico, como seria o usual. Depois, pela fotografia em preto e branco, a sugerir um tempo antigo no qual aquele tipo de coisa vista na tela acontecia pelo mundo. Quer dizer, num mundo anterior a 1989, queda do Muro de Berlim, e 1991, dissolução da União Soviética. Mundo no qual as pessoas podiam ser controladas pelos governos (como se hoje não fossem...), tinham dificuldade em se deslocar de um país a outro, eram expostos ao suplício das fronteiras, etc.

Esses expedientes parecem colocar Guerra Fria naquele nicho específico dos "filmes de arte", daqueles que fazem questão de exibir essa marca registrada, signo de prestígio cultural que, se não dialoga muito bem com o público, em compensação habilita-se a prêmios artísticos e dignidade intelectual. "Filme de festival", costuma-se dizer, de maneira depreciativa.

De resto, se assim for, surtiu efeito. Guerra Fria deu a Pawlikowski a Palma de direção no Festival de Cannes. Justificável, pois a direção é virtuosística.

Se esse reparo cabe, deve-se também dizer que essa bonita história de amor é conduzida sem qualquer obviedade. Sem autopiedade, Zula e Wiktor sofrem, porém parecem conscientes de que seus desencontros se dão tanto por circunstâncias da época em que vivem como por suas carências pessoais.

Joanna Kulig e Tomasz Kot têm interpretações marcantes. Ela é uma força da natureza, talentosa e sexualmente audaz. Ele pende para uma certa melancolia introspectiva. Pelo contraste de personalidades, completam-se. Mas esta completude é incapaz de mantê-los juntos, e essa é sua tragédia. Ao longo do período abordado, 15 anos, eles expressarão no rosto não apenas o passar do tempo, mas a soma de sofrimentos e desilusões que a vida lhes impõem. É bonito, e é triste. (Luiz Zanin Oricchio/Agência Estado)

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