Sobre incongruências
Dois longas exibidos na competitiva da Mostra de Cinema de Tiradentes trazem formas distintas de incongruênciaNa noite do último dia 24, quarto dia de exibição dos filmes da Mostra Aurora, a principal competitiva da Mostra de Cinema de Tiradentes, a aproximação temporal das sessões do paraibano Desvio, de Arthur Lins, e do goiano Vermelha, de Getúlio Ribeiro, trouxe diversas questões relacionadas à construção de ficções.
O primeiro filme se passa em Patos, interior da Paraíba, e conta a história de Pedro (Daniel Porpino), um detento por volta dos 30 anos que recebe o direito de saída temporária da penitenciária pela ocasião do Natal e, então, reencontra o passado nas figuras da família - sejam os núcleos mais próximos ou aqueles mais distantes - e dos amigos. O segundo mostra o universo singular de Gaúcho, sua família e amigos, num recorte que se dá sem sucessões lógicas ou obviedades.
Desvio se debruça, especialmente, na relação que Pedro constrói com a prima mais jovem, Pâmela, uma jovem de cerca de 18 anos que faz parte de um círculo do hardcore e rejeita a ideia, por exemplo, de fazer o Enem. Há ainda as figuras maternais que rodeiam o personagem: além da própria mãe dele, há ainda a avó. Apesar de estabelecer seus melhores momentos ao dar conta dessas relações - que criam relações paralelas entre o passado de Pedro e o presente que ele encontra, como o fato de que o próprio foi um nome importante da cena que sua prima frequenta, por exemplo -, o filme, como o nome já avisa, aposta em desvios constantes de foco.
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AssineEm dado momento há a relação familiar, em outro a busca por uma espécie de redenção e perdão, sem falar de desdobramentos de trama que parecem pouco justificados na relação das sequências. No debate, ocorrido na manhã de sexta, 25, o diretor justificou afirmando que não "daria conta" de todos os desdobramentos e intenções das personagens, procurando ter um olhar não julgador, pautado numa referência explicita por ele no cinema dos irmãos Dardenne, diretores belgas.
A construção de Vermelha, por sua vez, se baseia justamente na não-relação óbvia das cenas e sequências, pelo menos em um primeiro olhar. Na apresentação do filme na exibição de quinta, a equipe explicou que a obra foi filmada na casa do realizador, tendo como atores o próprio círculo afetivo de Getúlio, entre família, agregados e amigos. Mesmo que tenha essa relação direta com o "real", a obra se assume como uma ficção tanto na forma quanto nos discursos do cineasta e da equipe.
O tempo do filme é, em si, um destaque, sendo estabelecido através da decupagem, dos cortes e das frequentes incongruências que constroem o longa - sejam estas de som e imagem, de cena para cena ou mesmo de enquadramentos pouco óbvios. Há uma proposta que, ao mesmo tempo, se baseia na aleatoriedade e no improviso de vários diálogos - como a equipe assumiu no debate, também ocorrida na sexta - e dá conta de refletir concretamente sobre questões formais, como as noções de narrativa, estética e dramaturgia.
Parque Oeste é aqui
Também foi exibido na noite da quinta outro longa goiano, o documentário Parque Oeste, da cineasta Fabiana Assis. O filme mostra os processos de desapropriação e luta por moradia e direitos que acompanham os moradores do bairro estabelecido hoje com o nome de Real Conquista. Essa história é contada tendo como ponto central Eronilde Nascimento, liderança da comunidade.
Em 2005, a ocupação do Parque Oeste foi violentamente desapropriada pelo então governo goiano através da ação policial, o que se desdobrou na morte do companheiro de Eronilde e num longo processo de luta por moradia. No debate, também ocorrido na manhã de sexta, a protagonista lembrou que ações do tipo acontecem diariamente, em diversos locais, há anos. Os paralelos com diversos movimentos semelhantes ocorridos no Ceará - como o do Alto da Paz, para citar um - fazem do filme um registro de importante circulação.
Utilizando imagens de arquivo da época da desapropriação que remetem a um cenário de guerra, o longa ainda dá conta da importância da preservação da memória, posto que Eronilde guarda registros em vídeo, fotos e documentos de todo o processo que os moradores do então Parque Oeste passaram - de criminalização por parte da justiça, mobilização comunitária e posterior conquista de moradias. Real Conquista ainda precisa de escola, serviços básicos de saúde e lazer, mas o filme mostra que não será por falta de luta que essas ausências podem se prolongar.
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