Opinião: Michelle virá a ser a "mita"?
Com um público esmagadoramente feminino, branco e de meia idade, vestido de rosa, verde e amarelo, o evento deste sábado serviu para fortalecer a narrativa imagética de Fortaleza como uma cidade "de direita" que alguns nomes do bolsonarismo costumam interpelar
No evento em que foi anunciada como a estrela principal, ela surgiu de repente, sem ser anunciada no palco, mas com um grito estridente e com um desfile de simpatia, como se fosse uma apresentadora de TV. Pegou o público, que via imagens suas exibidas no telão, de surpresa, provocando alvoroço para o manuseio de celulares e câmeras.
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Michelle Bolsonaro, agora na dupla condição de ex-primeira-dama e possível candidata a presidente (embora lá citada como “nossa primeira-dama”), discursou para o conjunto de mulheres que esperavam o evento realizado pelo PL Mulher do Ceará, onde foi tratada como “dona Michelle”, a “luz que as mulheres precisam”, como disse a cerimonialista.
Com um público esmagadoramente feminino (em torno de 95%), branco e de meia idade (entre 35 e 60 anos), vestido de rosa, verde e amarelo, o evento deste sábado serviu para fortalecer a narrativa imagética de Fortaleza como uma cidade “de direita” que alguns nomes do bolsonarismo costumam interpelar.
Nomes importantes do bolsonarismo local estavam e foram devidamente citados: Silvana e Jaziel, Carmelo, André e seu pai, Priscila Costa dentre outros. Nenhuma autoridade de peso, contudo, esteve presente, exceção a uma silenciosa presença do prefeito de Eusébio, Acilon Gonçalves, ali na condição de presidente do PL (inclusive, passando pelo constrangimento de ver a deputada Silvana dizer que ele “bebeu” e “receitou” cloroquina na pandemia).
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Coube à deputada Silvana, bem mais do que à Michelle ou ao próprio Bolsonaro, a defesa hard do bolsonarismo, louvando o que se fez na pandemia (que nomeou como “maior operação de salvação de vidas”), a submissão feliz da mulher ao marido, o ataque à “doutrinação” dos filhos e o ethos cristão como régua para todas as práticas sociais. Ainda ameaçou “botar” doutrinadores na cadeia. Como os “ideólogos”, “doutrinadores” são sempre os outros.
Michelle, “a Bolsonaro”, prometeu reconstruir o país, e começou por acenar para um importante elemento do bolsonarismo: a oposição ao Judiciário; no seu caso, não ao TSE, que tornou seu marido inelegível, mas à “ex-juíza” que “deixou legado de morte” e “estava militando para assassinar bebezinho”. E foi esse seu melhor momento discursivo, quando falou longamente sobre o aborto. Mas essa pauta já é cara ao bolsonarismo, não acrescenta nada à sua empreitada presidencial.
Michelle, “a Michelle”, no momento em que foi mais Michelle, tratou de inclusão, a começar dos surdos, passando pelos monoculares (com a ajuda da deputada Amália) e de portadores de doenças raras (o que é digno de nota: Michelle trata de casos que não eram cobertos por “governos anteriores”, exatamente recorrendo a casos raros de doença). Até falou de um senador petista e de intérpretes de esquerda, afirmando tratar todos de modo igual. Seu “chamado” a replicar as imagens bíblicas de Ester e Maria a leva a ser uma “mulher” de força sem ser “feminista”. Nesse ponto, o da inclusão, Michelle não empolga as mulheres que lhe escutam; a não ser quando critica o governo de Lula e a “turista”, adjetivo que usa para falar de Janja, o que faz ver como as imagens circulam rapidamente no bolsonarismo, como num esquema industrializado.
Contudo, mesmo seu empenho pela comunidade surda parece ter uma razão de ser: é que, segundo ela, menos de 1% é cristão, “pela falta de acessibilidade das igrejas”. Logo, há interesse sectário, ao que parece. Não é pela inclusão, mas pela possibilidade de proselitismo religioso. Falta a Michelle dizer quantas vagas no serviço público, por exemplo, o governo que representa criou para tais cidadãos.
Não tive dúvidas de que o ponto alto do evento, que conseguiu lotar por volta de 70% do espaço, foi a presença de Bolsonaro, que discursou um pouco mais leve e moderado do que se costuma ver, embora tenha replicado elementos centrais que o caracterizam, com destaque para a ordem de que “minorias” respeitem “a maioria cristã da sociedade”.
Mas, e o PL? Apresentado como “partido da mulher brasileira”, arrancando a nomenclatura de um outro partido que assim se define, decidiu pela mobilização em torno das mulheres na política. Descobriu importante filão para seu crescimento. Eleições municipais, que turbinam as eleições nacionais, vêm aí. Daí a necessidade de consumir o fundo partidário nesses eventos realizados em lugares caros, como o buffet de Fortaleza.
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A disputa pela nomeação do candidato do PL à Prefeitura estava ali, tacitamente posta. André, Carmelo e Priscila nomeados no palco, com destaque para o modo carinhoso como Michelle se dirigiu a um deles, “carmelinho”, e ao quase “roubo de cena” à fala de Priscila sobre a ADPF.
Entre poucas blusas com sua imagem em relação àquelas com a de seu marido, Michelle ainda é reconhecida como “Michelle Bolsonaro”; é isso o que empolga pessoas e põe a máquina partidária para funcionar a seu favor, por meio do “PL Mulher”. Necessita-se que “a” Michelle se mostre, diga a que veio, consiga convencer investidores de capital político na possibilidade real de vir a ser candidata, sem o sobrenome. Um “exército” de mulheres conservadoras se viu ali, de uniforme e gritos; pertence à ela ou a seu marido? O processo de sua consagração, de sua construção como candidata do conservadorismo, está em curso, e parece consistir na demonstração de que ela é Bolsonaro no sobrenome e na ideologia.
Mas, e para além disso, o que há? Conseguirá ser efetiva sua construção como “a mita”, a mãe “salvadora”? Estejamos atentos para esse processo; a entrevista ao jornal O Povo, que parece ter sido a primeira e compartilhada pela própria Michelle em suas redes sociais, constitui a fabricação.
Emanuel Freitas
Professor de Teoria Política da Uece
Débora Castro
Jornalista e doutoranda em Sociologia
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