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Opinião: De casa à praça, eis o bolsonarismo

16:07 | Out. 25, 2018
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Tipo Notícia
Minha geração cresceu ouvindo os pais dizerem que o costume de casa vai à praça. Por isso era preciso desde logo aprender a ter limites: nem sempre dizer o que pensa dos outros, nem sempre agir levado pelo primeiro mau sentimento que desde sempre emerge em cada um. Havia uma enorme sabedoria aí: vivíamos sob a ditadura e as fronteiras escrupulosas entre a vida doméstica e a vida pública não estavam estabelecidas, afinal esta última simplesmente não existia. Daí a necessidade de evitar, desde casa, o que não pode ser dito e feito fora dela.
 

Essa é uma sabedoria agora esquecida. Os maus costumes caseiros, que apesar da proibição paterna se nutriram, mas que por esse mesmo interdito foram durante muito tempo refreados no âmbito doméstico,  hoje excederam seus limites e estão na praça. Todo um esforço de sociabilidade parece ter sido abandonado; e com ele os refreios que a vida comum exige. A vida doméstica tomou a palavra pública e, com isso, os preconceitos raciais, o desprezo pelo pobre, o incômodo invejoso com as mulheres e os estrangeiros, o agrado com a violência sobre os vários outros, o escrúpulo fóbico com o homossexual, tudo isso – tão íntimo nosso – veio a público; e veio como discurso, programa e prática políticos.
 

É verdade que não há política sem paixões. Mas é preocupante que dezenas de milhões de pessoas adotem para si como objeto e modo de atuação política o que não é nem deve ser o próprio daquilo que toda a tradição ocidental, desde a Grécia clássica, chama de Política. Os gregos haviam bem separado a vida doméstica da vida pública justamente para preservar esta última das relações, dos sentimentos e valores imediatos, ainda pouco refreados, que se instituem na intimidade. Também eles não queriam que o que era de casa fosse à praça! Isso seria, em Ética, falta de pudor, motivo de vergonha. E em Política, o fim da vida comum, o caminho do despotismo.
 

A candidatura de Jair Bolsonaro se institui ao mesmo tempo como via de expressão e como força indutora desses maus sentimentos, desses afetos destrutivos em praça pública. O bolsonarismo é a suspensão das necessárias barreiras do privado e do público, do íntimo e do político, do Si e do Outro; em consequência, é necessariamente a liberação da violência, na palavra e no ato. Não apenas a violência verbal exercida pelo candidato ou a violência física efetivada por dezenas de grupos bolsonaristas já amplamente registrada pela imprensa nas últimas semanas. O que se anuncia e já hoje se experimenta quase laboratorialmente é a quebra de um pacto civilizatório básico: a necessidade do limite, para que a vida comum, em toda a sua diversidade, possa manter-se. Se vencer, o bolsonarismo trará consigo o declínio daquilo que os antigos chamavam liberdade pública. E com isso a censura artística, jornalística e acadêmica, a perseguição política, a autorização da tortura, a licença para matar às polícias que já agora são as que mais matam no mundo... E quase nenhuma família ficará a salvo dessas consequências. É o que nossos bons e amáveis sentimentos civilizatórios, que também desde sempre restam em nós, precisam com urgência evitar.
 

Emiliano Aquino
Doutor em Filosofia
Professor da UECE
emiliano.aquino@uece.br

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