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O Brasil vive um "vale-tudo" no pós-impeachment

Ministro de Dilma Rousseff durante cinco anos, Cardozo aponta o impeachment como causa da crise institucional instalada no País. Elogiando Ciro, o petista, no entanto, acredita na liderança de Lula em 2018 para a reconstrução do País
19:22 | Out. 29, 2017
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O ex-ministro da Justiça concedeu entrevista exclusiva ao O POVO para as Páginas Azuis. Nela, o petista fala do cenário político brasileiro, da Lava Jato, e de eleições para o ano que vem. 
Confira a entrevista na íntegra:

O POVO: Depois do impeachment, o que o senhor tem feito depois de cinco anos como ministro de Dilma Rousseff?

José Eduardo Cardozo: Eu tenho advogado, atuado em Brasília e São Paulo, nos Tribunais Superiores, e sou professor. O cargo público para mim foi uma situação episódica na minha vida. No fundo, por pura vocação, eu sou professor. Então tenho me dedicado muito a aulas e a palestras no Brasil e no Exterior, além de cuidar da minha vida acadêmica que esteve parada tantos anos por causa da política. Então, agora estou buscando galgar com a maior rapidez possível os graus dessa vida acadêmica.

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O POVO: Algumas correntes do PT defendem que quadros do partido se lancem ao legislativo no ano que vem para fortalecer a bancada da esquerda. O senhor tem intenção de se candidatar?

Cardozo: Essa é uma pergunta que me tem sido feita muito nos últimos tempos, inclusive alguns achando que eu deveria ser candidato, e a minha resposta tem sido muito clara: não. Em 2010 eu fiz uma carta aos meus eleitores dizendo que não seria candidato a cargos proporcionais no Brasil enquanto o sistema político fosse esse. É um sistema político que gera corrupção, que traz uma incerteza de governabilidade, e sinceramente não me anima disputar uma candidatura proporcional. Do ponto de vista de candidaturas majoritárias, eu acho que meu partido tem nomes melhores que o meu para ocupar espaços nesse momento e por isso eu tenho dito que prefiro nesse momento da minha vida me dedicar mais à minha esfera acadêmica, a minha carreira profissional de advogado, que acho que tanto o meu lado pessoal como no meu lado cidadão podem responder melhor aquilo que eu desejo para o País nesse momento.

O POVO: Depois de um longo período como ministro da Justiça, por que o senhor deixou o cargo? Durante sua gestão, havia críticas de integrantes do seu próprio partido em referência ao andamento da Operação Lava Jato.

Cardozo: Na verdade eu acho que há uma má compreensão no papel do Ministro da Justiça diante daquilo que a Polícia Federal faz. Eu fui muito criticado pelos partidos que apoiaram o governo, mas também fui muito criticado pela oposição. Pela base do governo era criticado dizendo que eu não controlava a Polícia Federal. Pelos partidos de oposição, toda vez que eram investigados, diziam que eu estava orientando a Polícia Federal para investigá-los. Eu até brincava e dizia: definam-se, ou eu controlo ou não controlo. Quando na verdade, a verdade não estava em nenhum dos lados. Um ministro da Justiça não deve controlar a Polícia Federal, dizendo quem deve investigar e quem não deve. O que ele deve apenas, como superior hierárquico administrativo, é verificar se ali existem abusos. Havendo abusos da Polícia Federal, ele tem que tomar providência de apuração. Se houver abuso no Judiciário, não é o ministro da Justiça quem faz, portanto é o Conselho Nacional de Justiça. Se é um abuso do Ministério Público, não é o ministro da Justiça quem faz, é o Conselho Nacional do Ministério Público. Então, o ministro da Justiça analisa e verifica se houve alguma prerrogativa de alguém desrespeitada, algum abuso, ato de arbítrio, praticado por um delegado ou por um agente. Muitas vezes se falava ‘ah, mas a Polícia Federal está cumprindo aquela busca e apreensão, está fazendo aquela condução coercitiva’, por exemplo, ao meu ver infundada, que era para atingir o ex-presidente Lula. Eu também achava que era infundada, mas veja: a Polícia Federal cumpria ordem de um juiz. Se havia erro, era uma ordem judicial. Eu não poderia punir um delegado porque cumpre uma ordem judicial. E também falavam ‘ah, mas você não proíbe vazamentos’. Sempre que houve um vazamento ilegal nós abrimos inquéritos para apurar, mas muitas vezes não eram vazamentos, eram informações públicas que o juiz Moro abriu o sigilo da investigação. A meu ver algo muito discutível, polêmico, porque abrir sigilo de investigação isso significa às vezes prejudicar informações ou, se não há prejuízo para ela, atingir a imagem de pessoas antes que elas possam se defender e antes que possam haver apurações. Veja: o que um ministro faz diante de uma ordem judicial? A cumpre. São as regras do jogo. Tem que zelar pelo Estado de Direito. Ele cumpre, mesmo que discorde da situação determinada pelo Judiciário ou pelo Ministério Público. E quanto à Polícia Federal, ela pode investigar com liberdade dentro da lei. Diz a Justiça que orientar, como devem ser as investigações, impedindo que algumas pessoas sejam investigadas porque são seus amigos ou pedindo que pessoas sejam investigadas por serem seus inimigos, é um ministro da Justiça que descumpre a lei, que descumpre com a sua missão Constitucional.

O POVO: Mas o senhor deixou o posto por pressões?

Cardozo: Não. Eu fui o ministro mais longevo dos períodos democráticos do Brasil, fiquei mais de cinco anos. Eu acho que acima de mim teve só um ministro na época da Ditadura Militar. No período democrático eu fiquei mais tempo desde a época do império. É um tipo de cargo que pelas tensões que envolve ele traz desgastes, e eu pedi, já em 2014, à presidente Dilma Rousseff que saísse do governo. Eu achava que ela tinha que renovar, e ela me pediu para que permanecesse. Agora, havia um momento que não tinha mais. As vezes o presidente de um clube avalia que o técnico vai bem, mas diante de uma certa situação em que há reclamações da torcida, de todos os lados, da torcida adversária e aliada, é necessário substituir o técnico mesmo que ele faça a mesma coisa que o técnico anterior vinha fazendo. Eu me sentia tendo que sair para que desse uma oxigenação no ministério da Justiça naquele momento que eu acho que seria muito bem-vindo. E fui designado pela presidente Dilma Rousseff para ser advogado geral da União. E quis a vida que eu acabasse sendo o advogado dela no processo de impeachment em decorrência dessa própria mudança de cargo.

O POVO: Falando em impeachment, a ex-presidente deve recorrer ao Supremo Tribunal Federal com um pedido de anulação do processo usando a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro. O recurso é viável?

Cardozo: Os argumentos colocados na ação, eu sou advogado de Dilma, são irrespondíveis. Não havia base para aquele impeachment, não havia fundamento. O impeachment foi baseado naquilo que chamamos de desvio de poder, que é quando alguém que recebe da lei uma atribuição e não a realiza. Ou seja, realiza a mesma atividade para lançar um fim que a lei não permite. O processo de impeachment de Dilma Rousseff, é notório, começou com desvio de poder de Eduardo Cunha. Ele abriu aquele processo para se vingar de Dilma Rousseff porque ela não tinha dado os votos do PT para que ele não fosse cassado no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Depois se provou que muitos não queriam que Dilma Rousseff permanecesse no cargo para que pudesse vir alguém que parasse com a investigação da corrupção. A velha e clássica frase sempre lembrada do senador (Romero) Jucá que foi ministro de Michel Temer quando ele dizia: é necessário tirar Dilma para parar a sangria da classe política brasileira. Ou seja, eles assumiram para tirar uma presidente, que não aceitava arbítrios nas investigações mas que ao mesmo tempo não influenciava, para fazer um grande acordo nacional, para que os corruptos não fossem pagar suas penas, para que as investigações não continuassem. Ora, esse tipo de situação se chama desvio de poder. Como agora o delator (Lúcio) Funaro, ele chega a dizer que forneceu dinheiro para Eduardo Cunha pagar os votos pelo impeachment. Veja, ele fala em R$ 1 milhão, mas foi apenas um dos fornecedores. Eduardo Cunha deve ter procurado várias pessoas para alavancar recursos e comprar o impeachment. Foi um impeachment comprado iniciado por vingança e para estancar as investigações. Se isso não é desvio de poder, eu não sei mais o que é desvio de poder. É óbvio que o processo de impeachment é nulo e em condições normais o Poder Judiciário deve anular esse impeachment. Não para que simplesmente se satisfaça uma volta de uma presidente da República ao cargo, mas para que se respeite a democracia, para que se respeite as nossas instituições. A Constituição deixa claro que nenhuma lesão de direitos ficará afastada da apreciação do Poder Judiciário. E foi uma lesão de direitos a uma presidente legitimamente eleita de continuar governando justamente para que permitisse que um governo com as características de Michel, não seguindo o programa eleito, não cumprindo com aquilo que é o desejo da maioria da população brasileira, permaneça governando com 3% de aceitação acusado de crimes com todos os seus ministros. Ou seja, será que não cabe ao Judiciário tomar uma postura democrática e histórica nesse momento? Eu acho que sim.

O POVO: Dilma Rousseff foi destituída do poder com altos índices de reprovação popular e denúncias de corrupção envolvendo quadros do governo. O que mudou no pós-impeachment?

Cardozo: No momento em que nós fazemos a defesa da presidente Dilma Rousseff, eu cheguei a sustentar que aquele impeachment seria desastroso por diversas razões: a primeira delas é que foi um impeachment sem crime de responsabilidade, não tínhamos a prova de atos ilícitos. Foram usados pretextos absolutamente infundados do ponto de vista jurídico para que Dilma Rousseff fosse destituída. Ou seja, houve uma violação da Constituição. Um governo legitimamente eleito foi destituído sem que a Constituição admitisse essa possibilidade, foi por isso que nós usamos a expressão “golpe”. E ao dizermos isso, nós projetamos para o futuro que as consequências seriam: primeiro, o enfraquecimento institucional no Brasil. Desde o processo de impeachment nada mais no Brasil parou no lugar, nós temos é confusão. O Legislativo entrando em confronto com o Judiciário, o Judiciário entrando em confronto com o Ministério Público, o Executivo absolutamente enfraquecido… Portanto, parece que todos perderam o seu lugar no processo democrático brasileiro, e isso era algo que nós temíamos que pudesse acontecer e infelizmente aconteceu. De outro lado também apontamos que esse impeachment levaria um governo ilegítimo e que nenhum governo ilegítimo tiraria o Brasil da crise. Ao contrário, ele o agravaria. É o que nós estamos vendo com Michel Temer, que assumiu um governo indevidamente articulando com setores da sociedade para que o golpe se consumasse. Iniciou por força desses acordos um governo que tinha nada a ver com o programa eleito pelo povo, que era um programa de governo que ele deveria seguir como vice-presidente eleito. Ao contrário, ele começou a seguir o plano de governo de Aécio Neves (PSDB-MG), ou seja, o plano do candidato derrotado, fazendo compromissos com o mercado, cortando direitos dos trabalhadores, atingindo profundamente perspectivas de desenvolvimento social no Brasil, indo contra demarcação de terras indígenas, baixando atos que atingem a fiscalização do trabalho escravo. São situações efetivamente inaceitáveis para quem foi eleito com o programa que Dilma Rousseff foi. Tivemos uma situação em que o Brasil piorou do ponto de vista institucional, social. É um governo marcado por profundos atos de corrupção. Enquanto afastaram Dilma Rousseff por conta de uma questão orçamentária, agora o Congresso não afasta Michel Temer com um conjunto de indícios violentíssimos de atos que todos sabem o que caracterizaram e que foram simbolizados naquela sala cheia de dinheiro do ex-ministro Geddel Vieira Lima que está preso. São situações desse tipo, eu acho que são efeitos de um processo de impeachment equivocado em que muitos sustentavam sem perceber a gravidade que uma situação dessa traria. Eu me lembro de um juiz americano que dizia no presidencialismo o impeachment equivale a um terremoto político. Eu diria até mais: num presidencialismo, um impeachment sem causa, injustificável, ele é um permanente um terremoto político, e até que se tenha um presidente legitimamente eleito, infelizmente isso continuará acontecendo no Brasil.

O POVO: A um jornal espanhol, o ex-presidente Lula disse que o eleitor de Dilma Rousseff se sentiu traído com a implementação de uma agenda econômica não vendida na campanha eleitoral. O senhor acha que esse foi um dos pontos que enfraqueceu o governo?

Cardozo: O processo é muito complexo e eu tenho que analisar todas as causas. Eu posso dizer que em certos momentos o governo errou, todo governo erra. Mas também vi em um certo momento uma situação muito clara de crise política provocada especialmente de aliança entre derrotados na eleição de 2014 e aqueles que queriam que parassem a sangria da classe política brasileira. E o vértice disso se chamava Eduardo Cunha. Como presidente da Câmara, pautou projetos para desestabilizar o governo, não permitiu que o governo aprovasse leis que pudesse solucionar a crise econômica. Se você pegar os deputados de oposição e pegar os aliados do Eduardo Cunha, eles tiram maioria do governo. E ao tirar maioria do governo, criaram uma crise, que, apoiada por alguns setores da imprensa, venderam a ideia de ingovernabilidade. E quando você constrói a ideia de ingovernabilidade você não governa mais. Ou seja, nós, evidentemente, erramos, devemos ter errado em muitas coisas, tivemos uma postura internacional adversa seguramente na parte econômica. Mas essa fusão de gente despreocupada com a institucionalidade, com a democracia, e por uma atuação oportunista onde o quanto pior melhor levou a um desgoverno de Dilma Rousseff não provocada pelas suas próprias ações, embora nós possamos ter errado. Mas efetivamente acho que as causas centrais foram outras. O que Temer tem feito diferente de Dilma para não cair? Ele se livrou de duas denúncias da Procuradoria-Geral da República. Eu acredito que é um governo para conquistar maioria parlamentar. Michel não tem mais nenhuma preocupação com o Brasil, com o desenvolvimento do País, do cidadão, é só preocupação de permanecer no cargo. Isso faz com que ele busque escandalosamente todo tipo de entendimento com os parlamentares, liberando emendas, atendendo a setores retrógrados, como aconteceu com esse caso do trabalho escravo, ou seja, ele consegue tudo o que setores parlamentares que querem lhe apoiar pedem. Dilma Rousseff nunca fez isso do ponto de vista programático, ela nunca abriu mão de princípios. É evidente que para governar tem que negociar, pactuar, e isso o governo dela fazia, agora ela não chegou a abrir mão dos seus princípios para que efetivamente ela pudesse governar. Michel Temer parece disposto a tudo.

O POVO: Em meio à crise política, os Poderes têm entrado em conflito nos últimos meses. Há solução a curto prazo?

Cardozo: Quando se quebra as regras do jogo, os jogadores fazem o que vêm na cabeça. Quando se quebrou a regra do jogo democrático, com o impeachment de Dilma Rousseff, perderam lugar as instituições brasileiras. Ou seja, a partir daí tudo bagunçou e continua bagunçando. A única saída que nós temos para o Brasil é eleição, um presidente eleito democraticamente. Ou Dilma Rousseff volta com a anulação do impeachment, ou se elege um presidente. Enquanto isso não acontecer, enquanto estiver um presidente ilegítimo ocupando o Palácio do Planalto, as instituições perdem seu senso de limite. Porque se uma presidente eleita com mais de 55 milhões de votos pode ser retirada desta maneira sem crime de responsabilidade, apenas porque perdeu maioria parlamentar e Michel Temer por ter maioria parlamentar, acusado com provas fortíssimas se sequer investigado é numa ação criminal, ou seja, você perde o parâmetro, vale tudo. O impeachment introduziu no quadro institucional brasileiro a ideia de que vale-tudo. Enquanto não acabar com esse vale-tudo as instituições não vão ficar no seu devido lugar.

O POVO: Ciro, Lula, Doria… surgem como alternativas para 2018.

Cardozo: O Lula indiscutivelmente nesse momento é o que pode catalisar as forças progressistas e democráticas no País para vencer esta onda de conservadorismo. Eu tenho a candidatura do Ciro Gomes como interessante, pessoalmente gosto muito do Ciro, acho um homem brilhante, mas acho que nesse momento a candidatura Lula aglutina mais, e acho que nós temos que estar todos juntos. E eu acho que as forças conservadoras deste País tentarão evitar que ele seja candidato. Mas nós temos que mostrar que nós não podemos aceitar decisões no tapetão antes que o jogo ocorra. A condenação que Sergio Moro deu a Lula não tem o menor fundamento, basta ler as duzentas páginas da sentença, e eu li. Li com olhos mais isentos possíveis de alguém que é estudioso do direito. Não havia prova para aquela condenação. Então, portanto, se afastarem Lula dessas eleições nós não estaremos apenas diante de uma injustiça, mas diante de uma violência democrática.

O POVO: O senhor acredita na inocência do ex-presidente Lula?

Cardozo: Acredito, sinceramente acredito. Aliás, quem lê aquela sentença não só acredita na inocência, mas fica convencido dela. Para condenar alguém se tem que utilizar aquele conjunto de argumentos falaciosos, em que um apartamento que não pertence ao presidente foi dito que pertencia quando a própria empresa que é proprietária do apartamento coloca numa recuperação judicial como sendo dela… Ou seja, uma sentença fragilíssima que em qualquer condição normal não sobreviveria ou talvez nem fosse dada. Então se se precisa desse tipo de coisa para afastar Lula de uma eleição… Ao ler essa sentença, tive a certeza absoluta da sua inocência.

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