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"Não cabe ao Estado dizer que tipo de família deve existir"

16:22 | 25/09/2015
Para a deputada federal Érika Kokay, projeto de Estatuto da Família "institucionaliza o ódio homofóbico". Proposta aprovada por comissão especial na Câmara define como família somente a união entre homem e mulher. Após cinco horas de discussão, uma comissão especial na Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (24/09) por 17 votos favoráveis e cinco contrários o texto principal do Estatuto da Família, um projeto que define como família a união entre homem e mulher e exclui os casais homoafetivos. Em entrevista à DW, a deputada federal Érika Kokay (PT-DF), que votou contra, afirma que a proposta é um retrocesso não só para os direitos já conquistados pela comunidade LGBT, mas também para os diversos arranjos familiares. "O projeto institucionaliza o ódio homofóbico. O Brasil é o país que mais tem assassinatos homofóbicos. Dizer que o discurso do projeto é inocente e que não tem consequências, é um ledo engano [...]", afirma Kokay. "Ele tende a fazer com que os segmentos homofóbicos se sintam à vontade para menosprezar, desprezar e impedir a existência humana da comunidade LGBT." DW Brasil Como você avalia o projeto de estatuto que define família como a união somente entre homem e mulher? Érika Kokay É uma tentativa de uma bancada fundamentalista religiosa que está presente na Câmara dos Deputados de se contrapor a uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF). O Tribunal já legalizou a união homoafetiva e, sem dúvida nenhuma, é um retrocesso, não somente no que diz respeito aos direitos da comunidade LGBT, mas também aos diversos arranjos familiares e aos direitos já conquistados. Isso porque, ao restringir à família à união entre um homem e uma mulher, eles desconsideram o amor e o afeto. É, no fundo, um retrocesso na sociedade. Não cabe ao Estado dizer qual é o tipo de família que ele autoriza que exista. As famílias existem e cabe ao Estado se adaptar a elas. Qual é a intenção, de forma geral, do Estatuto da Família? A própria Constituição diz que cabe ao Estado dar assistência à família. Ao restringir como família a união entre homem e mulher, significa que eles estão legalizando e institucionalizando a ausência de políticas públicas para todos os outros arranjos familiares. Eles querem romper com a laicidade do Estado e fazer valer seus conceitos religiosos, além de subjugar a Constituição, hierarquizar os seres humanos, excluir os direitos da população LGBT e se contrapor à decisão do STF, que já reconheceu as famílias homoafetivas como famílias. Eles buscam construir um instrumento sob o argumento da defesa da família que, na verdade, não é a defesa, mas a institucionalização da homofobia e a exclusão de todos os arranjos familiares que foram conquistados pela sociedade brasileira. As famílias são mutáveis, já que um grupo familiar de 30 anos atrás não é o mesmo de hoje. Então, não cabe ao Estado esse nível de ingerência na sociedade e no modo em que pessoas organizam suas relações sociais. Quais são os outros pontos críticos do Estatuto? O projeto fala sobre a divulgação das famílias nas escolas, mas se refere somente às famílias formadas por um homem e uma mulher. Na prática, ele representará uma discriminação oficial a todos os outros arranjos familiares. Os filhos e filhas de famílias homoafetivas serão excluídos da lógica familiar, e a discriminalização será institucionalizada dentro da própria escola. Eles criam também conselhos que teriam os poderes de representar somente esse único tipo de família. Temos em curso uma lógica fascista de construção de instrumentos dentro do próprio Estado para excluir as diversas relações na sociedade. Como se dará agora a tramitação desse projeto? Em teoria, esse projeto não precisaria passar pelo plenário da Câmara dos Deputados, já que a comissão especial emite os pareceres que seriam dados por mais de três comissões. O projeto, então, iria diretamente para o Senado, salvo se houver um recurso assinado por pelo menos 10% dos parlamentares. Assim, a comissão especial perde seu poder terminativo, e o projeto terá que ir ao plenário da Câmara. Uma vez aprovado na comissão especial, estipulam-se cinco sessões ordinárias do plenário da Câmara, quer dizer, mais ou menos duas semanas, para ser apresentado o recurso. Se isso não acontecer, ele vai ao Senado. Nós vamos fazer o recurso. Mesmo que esse projeto tenha nascido morto, não se sustentando em nossa Constituição, não podemos contribuir para que haja neste ano um retrocesso tão profundo. Achamos que no plenário a correlação de forças é outra, porque lá não há o mesmo peso que a bancada fundamentalista tem numa comissão especial. Mesmo sendo aprovada no Congresso, em sua opinião, o STF deverá declarar a lei como inconstitucional? Por quê? O projeto é tão absurdo que achamos difícil que ele consiga concluir a sua tramitação no Congresso Nacional e, mesmo que seja aprovado, ele seguramente será considerado inconstitucional pelo STF. Isso porque o projeto fere a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais, e não é possível retroagir a legislação para prejudicar os direitos já adquiridos. Existe uma iniciativa, em grande maioria articulada e potencializada pela presidência da Casa, no sentido de impor derrotas a direitos já conquistados, como das mulheres e da comunidade LGBT. Não dá mais para menosprezar o absurdo que está se consolidando, perdendo a modéstia e tentando arrancar pedaços dos direitos já conquistados. Quais seriam as consequências caso esse projeto fosse aprovado no Congresso? Eles buscam criar uma insegurança jurídica, para que pessoas fiquem com medo ou inseguras em consolidar suas relações homoafetivas e adotar crianças. A intenção deles é a exclusão, de criar conselhos que vão defender só o tipo de família tradicional e que vão excluir as famílias homoafetivas de qualquer política pública, seja no Sistema Único de Saúde (SUS), na educação e nos direitos das famílias homoafetivas. Isso significa institucionalizar o ódio homofóbico. O Brasil é o país que mais tem assassinatos homofóbicos. Dizer que o discurso do projeto é inocente e que não tem consequências, é um ledo engano. O discurso é a ponta entre o pensamento e a ação, e ele tende a ganhar pernas e fazer com que os segmentos homofóbicos se sintam à vontade para menosprezar, desprezar e impedir a existência humana da comunidade LGBT. A existência e legalidade das famílias homoafetivas não atigem qualquer direito das famílias heteroafetivas. Autor: Fernando CaulytEdição: Luisa Frey
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