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Tribunais de Nurembergue promoveram o direito internacional

08:28 | 08/08/2015
Exigindo que seus princípios legais fossem criados praticamente do zero, julgamento dos principais líderes nazistas em 1945 estabeleceu bases para julgar crimes internacionais, e influencia a consciência global até hoje. Os julgamentos de Nurembergue abriram uma nova era na jurisprudência e na cooperação entre países. Seu fundamento foi um visionário acordo de direito internacional, a Carta de Londres, que estabeleceu o procedimento processual para os tribunais militares internacionais e americanos constituídos especialmente para Nurembergue. Também denominado Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional, esse documento-base foi assinado em 8 de agosto de 1945. Em 24 de novembro do mesmo ano, numa cidade alemã que poucos meses antes fora classificada como "90% morta", 22 homens adentraram o Palácio da Justiça de Nurembergue. Eles respondiam por crimes que até então nunca haviam existido juridicamente. Eles faziam parte do que ainda restava dos altos escalões nazistas. Depois de passar os meses anteriores internados em dois palácios em Luxemburgo e Frankfurt, não sabiam o que os esperava. Alguns contavam ser imediatamente executados, outros consideravam uma ofensa o mero fato de terem sido presos. Entre eles, a figura dominante era Hermann Göring, antigo presidente do Parlamento do Reich, comandante supremo da Força Aérea Alemã e eventual sucessor de Adolf Hitler. Importância extraordinária Ainda em julho de 1945, numa entrevista coletiva à imprensa, Göring fora indagado se sabia que constava da lista dos criminosos de guerra. "Não. A pergunta me espanta, porque não sei qual seria o motivo para eu estar nela", foi a resposta do líder nazista. Ele não tinha a menor ideia do enorme e complicado processo de que participaria, o qual exigiria a definição de fundamentos legais, pontos de acusação e penas totalmente inéditos. A estruturação desse processo penal foi um pouco como a da rede de energia, água e esgotos da Alemanha, em que os Aliados tiveram que começar do zero. Nunca houvera nada comparável na história judiciária. Segundo Lauri Mäksoo, professor de Direito Internacional da Universidade de Tartu, na Estônia, os processos de Nurembergue e a Carta de Londres tiveram um grande e visionário significado. "Não há nada mais importante do que eles nesse campo. Sua influência sobre a forma de definir crimes internacionais foi gigantesca. Foi praticamente com eles que se criou o conceito de crimes contra a humanidade", comentou à DW. O Estatuto de Londres foi o resultado de seis semanas de cansativas e caóticas negociações após o fim da Segunda Guerra Mundial, em torno de uma mesa quadrangular na capital britânica. O formato da mesa era obrigatório, para que as quatro potências aliadas Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética pudessem enviar delegações do mesmo peso, como relatam Ann e John Tusa em seu livro The Nuremberg trial, de 2010. Common Law versus Civil Law Como país anfitrião, o Reino Unido presidia as negociações. Mas não havia dúvida de quem realmente impulsionara toda a iniciativa: os Estados Unidos haviam tido a ideia de levar a tribunal a liderança do regime nacional-socialista. Os Aliados europeus tendiam a exigir punições mais diretas. Conta-se que, durante uma pausa descontraída, regada a álcool, nas negociações na Conferência de Teerã de 1943, o primeiro-ministro soviético Josef Stálin teria sugerido que os principais 50 mil nazistas fossem todos reunidos e fuzilados. Para os EUA, e em especial para o idealista juiz Robert H. Jackson, a formação de um tribunal para julgar os crimes mais atrozes da época era uma oportunidade histórica. "É mais do que hora de nós também agirmos pelo princípio legal segundo o qual o belicismo agressivo é ilegal e criminoso", escreveu Jackson, em relatório ao então presidente dos EUA, Harry Truman, durante os preparativos para a Conferência de Londres. No entanto, enquanto as semanas se sucediam, o juiz americano se enredava numa polêmica jurídica sobre a melhor maneira de conduzir o processo. O principal problema era que nos EUA e Reino Unido vigorava o sistema legal denominado Common Law, enquanto na maioria da Europa, por exemplo na Alemanha, era aplicada a Civil ou Continental Law. Segundo a primeira, a queixa é apresentada pela promotoria pública em versão preliminar, e as provas, somente durante o processo. Já na Continental Law, a queixa completa e todas as provas reunidas devem ser preparadas por um grupo à parte, e só então disponibilizadas à promotoria e à defesa. De acordo com esse sistema, por outro lado, os juízes têm o direito de interferir, guiando o processo. Enquanto isso, na Common Law os advogados de ambas as partes decidem sobre os procedimentos, interrogando réus e testemunhas alternadamente, no chamado cross-examination. Prenúncios da Guerra Fria Tais questões podem parecer irrisórias diante dos crimes em julgamento. No entanto, elas mostram quão profunda era a desconfiança entre os lados opositores em Londres uma desconfiança que já prenunciava a paranoia da Guerra Fria. Robert H. Jackson, futuro promotor-chefe dos Julgamentos de Nurembergue, e sua contraparte russa, o general Iona Nikitchenko, que seria juiz nos processos, envolviam-se frequentemente em mal-entendidos legais, os quais escalavam em atritos. Cada acusava o outro de ter intenções maldosas. Contudo "onde há uma vontade também há o caminho", como afirma Mälksoo. "Pode-se considerar realmente uma façanha essas duas tradições jurídicas terem chegado a um consenso, num caso em que as discordâncias eram tão gritantes." Direito internacional à mercê da política Ao fim das negociações do Estatuto de Londres, definiram-se os quatro pontos de acusação contra os 22 criminosos nazistas: crimes contra a paz, de guerra, contra a humanidade e, por último, conspiração com o fim de cometer tais crimes. À primeira vista parece que tudo fora levado em consideração, mas Jackson sentiu falta de dois pontos-chave que gostaria de ter fixado para casos futuros. Ele queria que a guerra em si fosse definida como crime universal, e que os princípios estabelecidos em Nurembergue passassem a valer para todas as partes envolvidas. No entanto, o sonho do juiz americano não se concretizou: Nurembergue permaneceu sendo um tribunal exclusivamente militar, criado especificamente para levar o regime nazista às barras da lei. Na época como também hoje em dia , o direito penal internacional não estava dissociado da política. Assim como os princípios da Carta de Londres foram adotados diretamente pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, também suas falhas se perpetuaram nele. "Um dos pontos de crítica ao TPI é que, visto realisticamente, ele nunca vai se ocupar de crimes de guerra americanos ou russos, devido ao status que ambos os países detêm no Conselho de Segurança da ONU e na ordem mundial", avalia Lauri Mäksoo,da Universidade de Tartu. "O problema permanece: essas leis também valem para as grandes potências? Do ponto de vista prático, na verdade, não." Nazistas ficha limpa Apesar da complexa realidade política, é inegável o significado do Estatuto de 1945. "A Carta de Londres foi um grande avanço cultural", comenta o historiógrafo alemão Ingo Müller. Pois se esquece rápido demais que a Alemanha nem sempre esteve disposta a aceitar os princípios que o documento representa. "Houve resistência declarada contra os Julgamentos de Nurembergue, sobretudo da parte dos juristas", comenta Müller. "O Judiciário alemão não reconheceu os veredictos, e quando os antigos nazistas saíram da prisão, tinham ficha criminal limpa. Assim, todos receberam, naturalmente, sua aposentadoria militar, inclusive os atrasados." Porém o historiador se mantém otimista. "A lição de Nurembergue é que o direito internacional pode ser aplicado." Ele admite a falha do TPI de Haia, de não ser reconhecido pelos realmente poderosos, como os EUA e a China. "Mas acredito que ele influencie a nossa consciência global." Autor: Ben Knight (av)Edição: Rafael Plaisant
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