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Em novo livro, Harper Lee arranha mito literário e fomenta debate racial

10:34 | 15/07/2015
Lançado em meio à discussão sobre violência policial contra os negros, segundo romance da reclusa escritora americana apresenta Atticus Finch, o herói literário dos direitos civis, como um racista convicto. Para crianças e adolescentes de todo o mundo, há décadas que o romance To Kill a Mockingbird (O sol é para todos, no Brasil) é uma perfeita introdução aos direitos civis e à luta pela igualdade racial. Publicado pela escritora Harper Lee em 1960 e adaptado para o cinema em 1962 com Gregory Peck no papel principal , a comovente história sobre justiça e racismo no sul dos Estados Unidos é narrada por Jean Louise "Scout", uma garota de 6 anos que tem no pai, o advogado Atticus Finch, um modelo de conduta moral. Ele defende um jovem negro de uma falsa acusação de estupro de uma mulher branca. Em Mockingbird, Atticus Finch é o autor de frases de profundo significado moral, como "Você só vai entender uma pessoa quando considerar as coisas pelo ponto de vista dela, quando entrar na pele dela e dar uma volta por aí" ou "A única coisa que não se atém à vontade da maioria é a consciência de uma pessoa". No novo livro de Harper Lee, Go Set a Watchman, os personagens do romance anterior são revisitados na mesma cidade fictícia de Maycomb, no Alabama mas, agora, 20 anos depois, em 1954, logo depois da sanção da lei que tornava inconstitucional a segregação racial nas escolas. Queda moral de um herói Nesse novo contexto, Atticus Finch tem 72 anos, é contra o fim da segregação e frequenta encontros onde pessoas brancas se organizam contra a nova legislação. "Você quer bandos de negros em nossas escolas, igrejas e teatros?", pergunta para sua filha Jean Louise, que agora tem 26 anos. Ela o está visitando, vinda de Nova York, e se choca com as atitudes racistas do pai. Além da queda moral do herói Atticus Finch, o novo romance de Harper Lee surpreende também por ter sido escrito antes de To Kill a Mockingbird. Trata-se do manuscrito que foi rejeitado pelos editores, que aconselharam Harper Lee e reescrever a história, adotando o ponto de vista de uma criança. Críticos literários e milhões de leitores já demonstraram surpresa diante do novo romance, à medida que trechos eram adiantados pela imprensa. Sam Sacks, do Wall Street Journal, considerou o livro "angustiante" e uma surpreendente refutação do idealismo perfeito de To Kill a Mockingbird. "Esta é uma história sobre a queda de ídolos. O seu tema principal é a desilusão", escreveu. Reverenciado como o grande ativista branco dos direitos civis, Atticus Finch foi recentemente citado por manifestantes que protestaram contra a morte de cidadãos negros nos Estados Unidos, como Michael Brown, morto a tiros por um policial em Ferguson, no Missouri, no ano passado. A pergunta que muitos se fazem agora, nos Estados Unidos, é se o incômodo retrato dele exposto em Go Set a Watchman é capaz de acabar com a sua duradoura autoridade moral. Watchman deveria ter sido publicado? Harper Lee disse anteriormente que preferia não publicar mais livros por causa do enorme sucesso de To Kill a Mockingbird, que valeu a ela um Prêmio Pulitzer. A escritora raramente fala em público, alegando já ter dito tudo o que precisava dizer e se comparando com o recluso personagem criado por ela mesma, Boo Radley. Por tudo isso, logo surgiu o boato já desmentido de que ela teria sido forçada a concordar com a publicação do novo romance, apenas o segundo de sua carreira. O manuscrito de Go Set a Watchman era dado como perdido e foi reencontrado em 2014. Mick Brown, do diário The Telegraph, opinou que talvez tivesse sido melhor, para a reputação da autora e para as milhões de pessoas que amam To Kill a Mockingbird, que Go Set a Watchman não tivesse sido publicado. Escrito na terceira pessoa e não na perspectiva em primeira pessoa de Scout, Go Set a Watchman é mais uma prova do olhar detalhado de Harper Lee e da sua capacidade de extrair nuances de um universo tão pequeno como a fictícia Maycomb. Daniel D'Addario, da revista Time, escreveu que "Go Set a Watchman é mais bem-sucedido como uma amplificação dos personagens que o livro compartilha com To Kill a Mockingbird". Como Atticus Finch não é mais um santo, mas um indivíduo conflituoso e complexo, Jean Louise é forçada a rever suas crenças. É provável que este romance, e não o seu ilustre antecessor, jogue uma luz mais atual sobre o necessário debate sobre racismo nos Estados Unidos de hoje. Atticus Finch, não mais como o herói da igualdade, mas como alguém que acredita na superioridade branca, expõe uma veia racista ainda muito presente no sul do país onde em junho um supremacista branco assassinou nove afroamericanos numa igreja em Charleston, na Carolina do Sul. O primeiro romance escrito por Harper Lee, publicado tanto tempo depois do segundo, é também a melhor prova da inabalável posição moral de sua autora perante o racismo nos Estados Unidos. Autor: Stuart Braun / Gabriela SoutelloEdição: Luisa Frey / Alexandre Schossler
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