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Alemanha atrai comércio de bens culturais roubados

06:29 | Nov. 04, 2014
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Organizações terroristas como o "Estado Islâmico" vendem artigos milenares saqueados, e um dos grandes mercados para essas antiguidades é o alemão. Para especialistas, país precisa de reforma das leis sobre o assunto. O oásis de Palmira, no deserto da Síria, foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Mas depois de ser invadido e ocupado pelo grupo terrorista "Estado Islâmico" (EI), o antigo magneto turístico mais parece uma paisagem lunar. Isso, porque assim que os milicianos do EI alcançam algum dos muitos sítios culturais milenares da Síria e do Iraque, eles começam a escavar de forma nada profissional. Explodem rochedos, cavam a até dez metros de profundidade e não hesitam em usar tratores de esteira. Saquear a antiga Mesopotâmia é um negócio lucrativo. Nas ruínas dos antigos assentamentos, os criminosos procuram principalmente por objetos que possam vender facilmente no mercado internacional de antiguidades: belas estátuas, brinquedos ancestrais, joias. Aquilo que consideram sem valor, é vandalizado ou simplesmente largado para trás, desprotegido, nas crateras abertas. Saque em escala inédita O fenômeno das escavações ilícitas é quase tão antigo quanto a própria humanidade. Entretanto, com as guerras no Iraque, a guerra civil síria e a ascensão do "Estado Islâmico", o saque de relíquias atingiu proporções jamais vistas. Dia após dia, os intermediários contrabandeiam arte roubada das zonas de combate do Oriente Médio até locais como o porto livre de Dubai, passando pela Turquia ou o Líbano. Lá, os artefatos ou são comprados diretamente, ou enviados para antiquários e casas de leilão na Europa e nos Estados Unidos, munidos de documentação de exportação fornecida pelos intermediários. Segundo a imprensa alemã, o comércio de objetos culturais roubados ou adquiridos ilegalmente ocupa a terceira posição no crime organizado no mundo, logo depois do tráfico de armas e de drogas. A cidade de Munique, no sul da Alemanha, é considerada um dos centros do comércio internacional de antiguidades. Nos catálogos de leilões de Munique e outros grandes centros comerciais de arte como Bruxelas e Londres, as fotos dos objetos saqueados são legendadas com designações de origem vagas, como "Oriente Médio" ou "coleção particular bávara". Os amantes da arte de Munique ou Bruxelas que compram esses artigos antigos não estão apenas se expondo a um processo criminal: ao adquiri-los, eles apoiam o terrorismo islâmico. A ministra alemã da Cultura, Monika Grütters, anunciou no fim de outubro uma nova lei que visa transformar a legislação vigente sobre a repatriação de bens culturais, de 2007, numa ferramenta eficaz contra a importação de objetos roubados. "A Alemanha deve prestar atenção para não se tornar num ponto de tráfico", alertou. No entanto, de acordo com Sylvelie Karfeld, do Departamento Federal de Investigações (BKA), isso já ocorreu. Numa coletiva de imprensa em Berlim, a funcionária responsável pelo combate à venda ilícita de antiguidades chegou a descrever a Alemanha como "El Dorado do comércio ilegal de artigos culturais". Em entrevista à emissora alemã NDR, Karfeld complementou: sob a lei atual do país, "um simples ovo de galinha é mais bem protegido e rotulado do que a mais valiosa antiguidade". Como se chegou a este estado de coisas? Interpretações contraditórias Já em 1970, a Unesco adotou a Convenção sobre Meios de Proibir e Prevenir Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícitas de Bens Culturais. Décadas depois, em 2007, a Alemanha foi um dos últimos países signatários. A implementação da convenção na legislação existente sobre a repatriação de bens culturais resultou em "leis de importação frouxas", segundo a ministra Grütters. Foi adotado um sistema de listagem: os países de origem obras de arte saqueadas deviam registrar, junto ao governo alemão, bens culturais "de importância nacional". Estes seriam, então, listados no Bundesanzeiger, o diário oficial alemão. Contudo, sete anos depois, os achados de escavações ilícitas não constam de lista alguma, e nem um único objeto foi devolvido a seu país de origem. Até porque, muitas vezes, as nações não têm ideia do que foi retirado de seu território. "É uma ilusão querer resolver o problema da receptação de antiguidades roubadas somente devolvendo as peças ao proprietário legítimo. Só se pode devolver algo se a proveniência for realmente comprovada", explica Michael Müller-Karpe, arqueólogo forense do Museu Central Românico-Germânico de Mainz. Como perito, ele ajuda os departamentos criminais da Alemanha na luta contra o comércio ilícito de bens culturais. Assim, apela às autoridades para que passem a agir tão logo apareça um artefato vindo do Oriente Médio: afinal, em todos os Estados sucessores do Império Otomano, a exportação de antiguidades é proibida desde 1869, o comércio, desde 1906. "Mesmo que a Síria, a Turquia ou o Iraque não possam exigir a devolução de determinados objetos, por não poderem provar que foram encontrados em seus territórios, está claro que eles têm que ser de origem ilegal", enfatiza Müller-Karpe. "Nesse caso, devem ser apreendidos e confiscados, pois se trata de receptação de bens roubados." Para ele e seus colegas, a interpretação da lei sobre repatriação de artigos culturais é tão "insustentável" quanto a atitude basicamente negligente das autoridades criminais em relação ao comércio de bens saqueados, disse o arqueólogo forense à DW. "Receptação de bens roubados é crime na Alemanha. Quem é apanhado pela polícia com a mala do carro cheia de autorrádios com os cabos cortados, tem um problema. Quando se trata de objetos arqueológicos, faz-se sistematicamente vista grossa. Isso é cumplicidade: não se deve minimizar." Apelo por mudança de paradigma A ministra Monika Grütters igualmente reivindica uma mudança de paradigma no trato da arte saqueada: o governo federal planeja só permitir a importação e comércio na Alemanha de bens culturais que disponham de uma licença oficial de exportação do país de origem. Para Michael Müller-Karpe, porém, isso não basta: a tentativa de importar peças roubadas, em si, deveria ser passível de pena. A rigor, já é assim, segundo a legislação vigente. Entretanto na prática não cabe aos negociantes provar que suas mercadorias são legais, mas sim, ao contrário, as autoridades é que têm de atestar sua ilegalidade. As leis existentes sobre repatriação de artefatos culturais têm prejudicado seriamente a reputação da Alemanha, diz Grütters. A nova legislação está prevista para entrar em vigor em 2016. Até lá, porém, a ministra já conta que o influente lobby dos antiquários tentará fazer pressão sobre os legisladores. O arqueólogo forense Michael Müller-Karpe torce para que, ao contrário de 2007, o governo não se renda, mas sim persevere e resista.

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