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A vida entre escombros na Faixa de Gaza

09:40 | Ago. 15, 2014
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Tipo Notícia
Cinco semanas de guerra deixaram um rastro de destruição no território palestino. Hospitais não conseguem atender feridos. Faltam água e eletricidade. E as pessoas lutam para sobreviver. O distrito de Shajaiya fica na parte leste da Faixa de Gaza, não muito longe da fronteira com Israel. Na verdade, tudo em Gaza fica perto da fronteira com Israel. Pois essa faixa litorânea arenosa, onde 1,8 milhão de pessoas vivem, tem pouco mais de 12 quilômetros em seu trecho mais largo. E aqui, no norte, o território tem apenas a metade dessa largura. O planejador de rotas do Google Earth calcula, para uma viagem do Mar Mediterrâneo até a fronteira com Israel, 18 minutos de carro. Mas isso é uma ficção. Não é possível percorrer esse trecho de carro, porque, em todos os lugares, enormes montes de escombros bloqueiam o caminho. Pessoas caminham por cima de ruínas, andam através de entulhos e restos de concreto. Elas procuram algo que ainda possam aproveitar, buscam por pertences que preservem suas lembranças. Tudo está cheio de poeira, que se amontoa em cada dobra de roupa e cobre os calçados com um pó cinza. O cheiro é de podridão. Sob os entulhos, há cadáveres e carcaças de animais. Assim está a Faixa de Gaza após cinco semanas de guerra. A área, superpovoada, de parcos recursos naturais, já era antes um lugar pobre, uma faixa de miséria onde as pessoas vivem presas e isoladas. Agora, em alguns lugares, parece como que se tivesse sido devastada ainda mais por um terremoto. Mas este não é um desastre natural. A destruição foi causada por pessoas e, para o ativista Araji Sourani, realizada segundo um plano. "Isso é o que vimos desde o primeiro dia. Concluímos que estes foram ataques deliberados e intencionais." Para ele, os alvos eram civis. Guerra sem precedentes Sourani é advogado e ativista dos direitos humanos, fundador do Centro Palestino para os Direitos Humanos e ganhador do chamado "Prêmio Nobel alternativo". Nesta noite quente de verão, ele está sentado em seu pequeno jardim na Cidade de Gaza, sob o zumbido dos drones de vigilância israelenses. Sourani está convencido de que Israel cometeu crimes de guerra em Gaza. "Esta guerra é única e sem precedentes. Ela é feia. Tenho 60 anos. Nunca tinha visto nada parecido." Também na virada de 2008 para 2009, durante a operação de três semanas chamada Chumbo Fundido, Israel cometeu, segundo ele, crimes de guerra. "Mas não a este ponto", afirma, acrescentando que o Exército atacou deliberadamente casas, escolas e clínicas. "Há agora meio milhão de refugiados. Algumas pessoas tiveram que deixar seus parentes debaixo dos escombros." Intencionalmente ou não, os ataques israelenses espalharam medo e terror. As pessoas fugiam em pânico. Mais de 280 mil foram mantidas nas escolas da Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA). Outras se abrigaram com amigos ou parentes ou simplesmente passaram a morar na rua. Segurança elas não encontraram em nenhum lugar. Várias famílias foram vitimadas pelos ataques israelenses nos locais onde se refugiaram. Como a do alemão-palestino Ibrahim Kilani, morta sob as ruínas de uma torre residencial bombardeada na Cidade de Gaza. A família havia fugido por duas vezes. De Beit Lahia, no norte, até Shajaiya, no leste e, depois, para a Cidade de Gaza. Apenas algumas horas depois de chegarem ao prédio, foram mortos. Cirurgias realizadas no chão Mesmo nos hospitais, o espaço ficou restrito. No Al-Shifa, os médicos têm que operar os feridos no chão. Os pacientes ficam deitados em colchões espalhados pelos corredores. Muitas vezes, vários pacientes têm que dividir a mesma cama. No hospital hospital Al-Shifa, não existem só doentes e feridos, mas também refugiados que procuraram abrigo no pátio do complexo de edifícios. "Imagine o seu hospital local, que tem leitos para 250 pacientes, e imagine que de 5 mil a 10 mil pessoas vivem em barracas como refugiados dentro deste hospital. E agora, imagine que você tem que tentar acomodar 600 pacientes neste hospital com 250 leitos", descreve o médico Ghassan Abu Sitta. "Os aparelhos médicos estão tão gastos que, durante uma cirurgia, ferrugem e pedacinhos de metal caem nas feridas." Sitta é britânico de origem palestina e vive no Líbano, tendo chegado à Faixa de Gaza como parte de uma equipe médica de assistência. Sua especialidade é cirurgia plástica relacionada a ferimentos de guerra. Ele já atuou em muitas áreas de conflito, tendo estado em Gaza pela última vez durante a Operação Chumbo Fundido. Na época, o Exército empregou bombas de fósforo, e Sitta tratou feridos com queimaduras graves. Desta vez, ele tem que lidar com outros tipos de lesão. "Na maioria das vezes temos ferimentos de explosão, de estilhaços e queimaduras. Particularmente chocante é a alta percentagem de crianças feridas. Elas são grande parte dos feridos, e muitas perderam a família", relata. Ao todo, 448 crianças morreram durante a ofensiva. Sobretudo muitos bebês e crianças de colo estão entre as vítimas. Nas fotos, elas muitas vezes aparentam estar externamente ilesas, como se estivessem dormindo. Mas foram mortas pelas ondas de pressão desencadeadas pelas explosões e que agem muito mais fortemente no corpo sensível delas, explica Sitta. Ele próprio é pai de três meninos. Por isso, diz que não consegue se distanciar do sofrimento das crianças em Gaza. A cada dois dias, três horas de eletricidade Mas o maior problema para médicos e pacientes é a falta de energia. O Al-Shifa e os outros hospitais têm geradores, mas estes também costumam falhar. Além disso são caros, e o combustível é escasso. O abastecimento de eletricidade da Faixa de Gaza já era deficiente antes da ofensiva. As pessoas geralmente tinham apenas algumas horas de eletricidade durante o dia. Agora, a situação é calamitosa. "Praticamente não há eletricidade", diz o diretor da companhia de eletricidade palestina, Adel El Habash. "Normalmente recebemos energia a partir de três fontes: de nossa própria usina, de Israel e um pouco do Egito", relata. Ele conta que Israel atacou a usina local, destruindo caldeiras e turbinas, e os tanques pegaram fogo com os bombardeios. Ele avalia que deve demorar alguns meses até que a usina esteja apta a funcionar de novo. De Israel, só chega pouca energia, pois seis dos dez pontos de alimentação foram danificados durante a guerra. "No momento, temos três horas de eletricidade a cada 48 horas", contabiliza Habash. Dramáticos são os efeitos do apagão para o abastecimento de água e para o sistema de esgoto. Rebhy El Sheikh é vice-presidente da companhia palestina de abastecimento de água e responsável pela Faixa de Gaza. Seus olhos se enchem de lágrimas quando ele fala das dificuldades a que ele e seus funcionários estão expostos desde o início da ofensiva israelense. "Até agora, sete dos nossos técnicos foram mortos quando tentavam consertar as tubulações de água ou prestar outros serviços." Mesmo em tempos normais, o abastecimento de água potável em Gaza já é extremamente precário. O único recurso natural de que a região dispõe é o lençol de água subterrâneo. Mas o bombeamento excessivo fez com que a água se tornasse salgada e contaminada. O especialista em água Al Sheikh está pessimista. "O lençol freático de Gaza não será mais aproveitável a partir de 2016. Se a coisa continuar como está, sem intervenção, até 2020 ele sofrerá danos irreparáveis." De acordo com um relatório das Nações Unidas, a partir de 2020, no mais tardar, a Faixa de Gaza deixará de ser habitável. Para muitas pessoas que sobreviveram à guerra das últimas semanas, isso já é a realidade.

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