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Ministra negra força a Itália a encarar o próprio racismo

06:12 | 16/07/2013
Ministra da Integração Cécile Kyenge incita ódio da direita italiana por sua defesa dos imigrantes e por sua cor de pele. Histórico nacional de racismo é de longa data, mas há sinais de mudança. Desde que foi nomeada como primeira chefe de ministério negra da Itália, em abril último, Cécile Kashetu Kyenge tem sido vítima de observações de cunho racista e sexista por parte de membros da Liga Norte (LN), partido populista de direita que, entre outras bandeiras, é contra a imigração. Seus insultos incluem "macaca congolesa" (a ministra da Integração nasceu e cresceu na República Democrática do Congo) e "membro do governo bonga-bonga". Uma semana atrás, após sugerir que os imigrantes seriam responsáveis pelos piores crimes na Itália, a conselheira municipal de Pádua, Dolores Valandro, não hesitou em postar no Twitter: "Não há ninguém que estupre a Kyenge para ela entender o que sentem as vítimas de um crime atroz assim?". "Piada infeliz" Neste sábado (13/07) o jornal Corriere della Sera noticiou que o vice-presidente do Senado italiano, Roberto Calderoli, declarara durante um comício que Kyenge "estaria melhor trabalhando como ministra no próprio país dela". Em seguida, o político da Liga Norte comparou as feições da política de 49 anos às de um primata. "Eu adoro animais, ursos e lobos, como se sabe, mas quando vejo as fotos de Kyenge, não consigo deixar de pensar na cara de um orangotango embora eu não esteja dizendo que ela seja um." Instado pela agência de notícias italiana Ansa a explicar as injúrias, Calderoli replicou que se tratara de "uma piada infeliz", feita durante um comício, nada mais. O peso das palavras O primeiro-ministro Enrico Letta, de centro-esquerda, expressou solidariedade com a ministra, classificando o comportamento como inaceitável. Kyenge por sua vez, declarou ao Corriere que não exigia a renúncia de Calderoli, mas que todos os políticos devem "refletir sobre o seu uso da linguagem" e que "palavras têm peso", pois, afinal, estão "falando em nome dos cidadãos e representando a Itália". Enfim, chega um momento em que "é preciso dizer basta", concluiu. Cécile Kyenge, que vive desde 1983 na Itália, onde também se formou como oftalmologista, afirmara, em junho, que não tem medo. "Há insultos e ameaças contra mim porque agora estou numa posição visível, mas, na verdade, são ameaças contra qualquer um que resista ao racismo, que resista à violência." Na qualidade de ministra da Integração, ela pretende lançar uma lei facilitando, aos filhos de imigrantes ilegais, sua naturalização como italianos. Tal agenda política enfurece boa parte dos italianos e, segundo certas fontes, até transformou alguns em opositores radicais da imigração. Tradição do politicamente incorreto No entanto, comentários racistas e sexistas não são raridade na Itália, sendo tolerados em silêncio, fora da política. Nos estádios de futebol, por exemplo, praticamente "fazem parte do jogo". Dois meses atrás, o jogador Mario Balotelli também resolveu dizer "basta": não mais suportando os cantos racistas entoados pelas torcidas, o atacante do Milan e craque da seleção nacional ameaçou deixar o campo, caso fosse insultado mais uma vez devido à cor de sua pele. Em ocasiões passadas, outros jogadores italianos e até mesmo times inteiros já protestaram dessa forma. Um argumento para relativizar o problema é que, enquanto outros países já vêm enfrentando as questões de integração há décadas, o afluxo de imigrantes à Itália é relativamente recente em 1990 a população só incluía 2% de estrangeiros, hoje essa taxa é de 7,5%. A própria Kyenge permaneceu cautelosa, ao ser indagada, numa coletiva de imprensa, se a Itália é um país racista. "É uma questão complicada. Tenho sempre dito que a Itália [...] precisa saber mais sobre migração e o valor da diversidade, e talvez o que mais falte aqui seja uma cultura da imigração. Só depois de um país haver processado essas coisas é que se pode dizer se ele é racista ou não." Sinais de mudança? James Walston, analista político especializado em sociedade italiana da America University, em Roma, vê uma luz no fim do túnel da intolerância nacional: "O aspecto positivo dessa linguagem extremamente desagradável é que outras pessoas, que estão tão ofendidas quanto [Kyenge], expressam isso e a apoiam." Referindo-se ao caso Valandro que custou à conselheira não apenas duras críticas, como também sua exclusão do partido Walston acrescentou: "Quando uma política da Liga Norte diz que Kyenge devia ser estuprada, não são apenas os liberais simpáticos e bonzinhos que ficam chocados, mas também os próprios líderes partidários [da LN] têm que dizer que isso é inaceitável e a expulsá-la do partido". Para o politólogo, a projeção crescente dos imigrantes vem forçando a sociedade italiana a encarar de frente seu racismo casual, longamente tolerado. Ele lembra que três outros membros do atual Parlamento também nasceram no exterior. E que o recém-eleito prefeito da cidade de Vicenza, no norte um celeiro de adeptos da LN é um imigrante, substituindo seu antecessor abertamente racista. Walston aponta mais um indício de que as coisas estariam mudando: quando em junho, num surto psicótico, um refugiado africano assassinou vários italianos a machadadas, em Milão, a Liga Norte imediatamente foi recrutar adeptos na área. No entanto, os neofascistas foram expulsos pelos moradores, furiosos de que alguém se aproveitasse da tragédia para incitar o ódio contra os imigrantes.

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