Epidemia de varíola em Fortaleza: do Dia dos Mil Mortos às ossadas de Jacarecanga

Registro histórico da devastação causada pela varíola em Fortaleza nos final dos anos 1870, Dia dos Mil Mortos se tornou conhecido pelo número de vítimas sem precedentes

06:00 | Out. 24, 2025

Por: Arthur Albano
Em 1994, mais de uma dezena de ossadas foram descobertas sob as ruas do bairro Jacarecanga, em Fortaleza (foto: Manuel Cunha/O POVO.doc)

Um dos capítulos mais tristes da história de Fortaleza, a epidemia de varíola que atacou a capital cearense durante a década de 1870, deixou sequelas históricas. A maior delas foi o Dia dos Mil Mortos, registrando o ápice de uma doença que espalhou mortes e pânico pelas ruas da Cidade.

Na década de 1990, essa história ganhou novos desdobramentos com a descoberta de ossadas no bairro Jacarecanga. A seguir, veja um apanhado da cobertura do O POVO ao longo das décadas e saiba o que aconteceu.

Dia dos Mil Mortos: ossadas descobertas no bairro Jacarecanga levantam mistério

No dia 13 de janeiro de 1994, a capa do O POVO trazia uma manchete intrigante: “Operários encontram ossadas sob o asfalto”.

O texto informava que “quase duas dezenas de ossadas humanas” foram encontradas no bairro Jacarecanga por operários realizando escavações do serviço de saneamento e esgoto do Estado.

O “cemitério” clandestino estava sob a rua Adriano Martins, no cruzamento com a avenida Francisco Sá. Ao todo, foram encontradas 15 ossadas em um trecho de aproximadamente 50 metros de extensão.

Após ouvir moradores, descobriu-se que cerca de outras 15 ossadas haviam sido encontradas durante construção dos edifícios localizados naquela área alguns anos antes.

O texto mantinha o mistério e o choque da descoberta, mencionando apenas que as ossadas poderiam pertencer a vítimas da “peste” que assolou Fortaleza em 1935. Mesmo sem respostas, também havia o rumor de que abaixo da autoviária São Vicente de Paulo existiam cerca de 200 corpos insepultos de pessoas que teriam morrido na Assistência Municipal.

A notícia se encerra com o depoimento da delegada Eliane Barbosa, do 1º DP, afirmando que somente com o depoimento de pessoas que conheciam o bairro há muitos anos se poderia esclarecer a origem das ossadas.

Para o professor Geraldo da Silva Nobre, presidente do Instituto do Ceará à época, era possível todas as ossadas serem da mesma família, já que não havia informações sobre a existência de um cemitério público naquelas imediações. Ele levantava a possibilidade de se tratar de um cemitério particular em torno de alguma capela pertencente a algum sítio que existira na região.

O mistério em torno das ossadas permaneceu, ainda que as pistas indicassem o caminho certo. Elas eram mesmo vítimas da “peste”, mas não de 1935, como se supunha, e sim de um período anterior, no auge do terror causado pela varíola.

Dia dos Mil Mortos: um registro por Rodolpho Theóphilo

Em 28 de junho de 1997, O POVO publicou dois textos que apontam para solução do mistério das ossadas do Jacarecanga. No caderno Polis, em um especial para o sábado, o professor de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Edilberto Cavalcante Reis publicou “A Cidade e a Peste”, relembrando o “tempo em que Fortaleza era a metrópole da fome” e a “capital de um pavoroso reino macilento e martírio de um povo em penúria”.

Em um trecho, o autor destaca: “Revirando os arquivos do cemitério São João Batista, as páginas dos jornais, as crônicas e relatos de época, nota-se o quanto a peste fazia parte do cotidiano das pessoas. As doenças endêmicas, mesmo em tempos de fartura e de tranquilidade, encarregavam-se de manter acesa a chama do medo”.

Por meio desses arquivos, a história do período de vacinação contra a doença é reconstruída com destaque para o Lazareto da Lagoa Funda, um misto de hospital, leprosário e campo de concentração.

É mencionado um dos fatos mais marcantes desse período: o “Dia dos Mil Mortos” marcou a vez que, em um único dia, a varíola ceifou nada menos que mil vidas. Edilberto explica que o transporte dos cadáveres dos arredores da Cidade até o Lazareto acontecia lentamente pelas ruas do Centro.

“O dia foi pequeno para transporte e enterro de tantos mortos. Caindo a noite, os cadáveres são abandonados. Pela manhã, quando os coveiros chegaram, os cães estavam a refestelar-se com tão inesperado banquete”. A cena de horror descrita por Edilberto faz jus a doença que “não escolhia a quem levar em sua procissão de mortos”.

O outro texto publicado na seção da Contracapa é um registro intitulado “O Dia dos Mil Mortos”, escrito pelo farmacêutico Rodolpho Theóphilo no livro “Varíola e Vacinação no Ceará”. Nele, o autor descreve a tentativa de sepultar os mil e quatro corpos que o Cemitério da Lâgoa Funda recebera naquele 10 de dezembro de 1878.

Junto a essa cena, o autor dimensiona o nível de pânico que a varíola instaurou na Capital, fazendo com que a população buscasse ajuda religiosa da Igreja Católica. O texto se encerra com uma descrição do Lazareto, destacando o ambiente fétido e decadente em contraponto com o esforço e a caridade das “santas mulheres” que serviram de enfermeiras aos doentes.

Rodolpho Theóphilo encerra falando dessas mulheres com um pedido: “Deixe-as em paz com a sua crença, cuidando dos desgraçados que nos Lazareto apodreciam em vida” (sic).

Dia dos Mil Mortos: uma epidemia em meio à seca

Após o esclarecimento de que as ossadas encontradas no bairro Jacarecanga foram vítimas da epidemia de varíola que assolou Fortaleza em 1878, foi preciso refletir o tamanho daquela tragédia em um quadro histórico.

Em 7 de maio de 2006, Ana Cecília Mesquita publicou um texto que também falava sobre o Dia dos Mil Mortos, trazendo dados concretos sobre a mortandade da época.

“No mês de dezembro de 1878, o obituário de varíola foi de 14.491 pessoas. Somente no dia 10 de dezembro de 1878, 1.004 pessoas morreram, o que ficou conhecido como o Dia dos Mil Mortos”, detalha.

Entre as vítimas da doença estava a esposa do presidente da província, que faleceu mesmo tendo se vacinado contra a varíola por ter contato com os infectados. Marieta Gababria morreu após cinco dias de sintomas de varíola hemorrágica, mostrando que a doença realmente não fazia distinção.

O historiador José Olivenor Souza Chaves, entrevistado à época, explica que havia um duplo medo na população: “Da multidão, dos problemas sanitários dos retirantes maltrapilhos sem condição de higiene e, do ponto de vista moral, porque as pessoas andavam seminuas a pedir na rua”.

A dimensão dessa tragédia se deu em conjunto com a fome e a seca marcantes no Ceará em 1877, critérios que o jornalista Érico Firmo analisou em um especial jornalístico publicado em dezembro de 2018, marcando os 140 anos da tragédia:

“No último mês de novembro, foram 105 mortes violentas na Capital. Em um dia, a varíola matou nove vezes e meia mais, há 140 anos, do que a insegurança mata hoje em 30 dias. Com uma diferença: no Censo realizado mais próximo à seca, em 1872, Fortaleza tinha população computada em 42.458 habitantes. Hoje, são 2.643.247, pelos últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O cataclismo ocorrido em 10 de dezembro de 1878 não tem paralelo”, analisa.

Apesar dos horrores vividos pelos fortalezenses, ainda houve recusa da população em tomar a vacina. Firmo descreve que “além do preconceito e da ignorância, o fato é que as doses vindas do sul tinham baixa qualidade”.

Apenas quando a vacina passou a ser produzida em Fortaleza é que a imunização ganhou eficácia, sendo sua campanha registrada por Rodolpho Theóphilo.

A seca e a varíola voltaram a Fortaleza em 1888 e 1900, mas em picos menos expressivos, longe da intensidade de 1878. Em 8 de maio de 1980, a Organização Mundial de Saúde declarou a varíola erradicada após matar mais de 300 milhões de indivíduos no planeta.

Causada pelo vírus Orthopoxvírus variolae, a varíola é transmitida de pessoa para pessoa pelas vias respiratórias. Os sintomas iniciais são febre muito alta, dores e mal-estar. Quando a febre abaixa, surgem manchas vermelhas as quais evoluem para bolhas de pus, causando coceira e dor.

Até hoje não existe tratamento efetivo contra a varíola e a melhor ação para segurança individual e coletiva é a vacinação, garantindo proteção e evitando contrair a doença.

No Brasil, a vacinação rotineira contra varíola cessou em 1973, segundo o Ministério da Saúde por conta do sucesso da campanha mundial em prol da erradicação da doença. A Organização Mundial da Saúde (OMS) oficializou a erradicação em 1980.

Desde então, a vacina não faz parte do calendário infantil e seu uso é restrito a populações com risco específico, como militares e profissionais de laboratório.

A varíola segue erradicada. Nos últimos anos, houve surtos de mpox (anteriormente chamada varíola dos macacos). A vacina contra a doença é oferecida para grupos de risco e pessoas que tiveram casos confirmados.