Encoxar e apalpar são importunações sexuais mais registradas pela plataforma Nina
Denúncias são feitas de forma anônima e podem ser realizadas pelo WhatsApp da ferramenta. Especialistas apontam a importância da formalização do Boletim de Ocorrência
Usuários do transporte público de Fortaleza podem registrar denúncias de importunação sexual a partir da plataforma Nina 2.0 desde setembro de 2022. Com a ampliação do serviço, que já funcionava no aplicativo Meu Ônibus, a nova versão da ferramenta teve 423 denúncias. Desse total, encoxar e apalpar configuram 43% dos registros, seguidos por intimidação (16%), tocar-se ou se mostrar (12%), perseguição (6%), fotos não autorizadas (4%) e outros tipos de comportamentos inadequados (19%).
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É possível denunciar casos de importunação sexual ocorridos nos ônibus ou terminais da Capital. De acordo com dados da plataforma divulgados pela Prefeitura de Fortaleza, a maior incidência ocorre dentro dos ônibus, com 78% dos casos relatados, 7% nos terminais e 6% nas paradas de ônibus.
A maioria dos denunciantes são mulheres entre 21 e 40 anos de idade, com 86% dos registros. Geralmente, o medo fazia as vítimas não denunciarem.
Foi o caso de uma passageira que estava no Terminal do Papicu na manhã da última sexta-feira, 10, que passou por uma situação de importunação sexual no ônibus há mais de dez anos, quando se mudou para Fortaleza.
Ela lembra como a violência a deixou desconfortável e que não denunciou o homem porque ficou “tensa e sem reação”. Ao entrar no ônibus, notou um homem que estava sentado e vendo vídeos no celular. Em certo momento, o rapaz se levantou e ficou em pé ao lado dela, que estava sentada. Mesmo com o ônibus vago e com assentos disponíveis, o homem permaneceu em pé, encostando nela.
A pesquisadora e colaboradora do Observatório de Violência contra a Mulher da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Ana Paula Vasconcelos, considera que, além do contexto de sociedade patriarcal e capitalista, o anonimato colabora para que esse tipo de crime seja realizado em locais públicos.
“É uma cultura que objetifica o corpo das mulheres. Os homens se acham no direito de tocar, de apalpar. Isso acontece tanto por essa questão de uma sociedade capitalista e patriarcal, como pelo fato de que, no espaço urbano, tem a questão do anonimato. Ou seja, a gente sofre esse tipo de violência e não consegue identificar aquela pessoa que fez”, pontua.
Em relação ao período em que as denúncias são realizadas, o levantamento da plataforma Nina mostra que o turno da manhã concentrou a maior parte dos registros, com 45%, seguido pela tarde, com 35% e a noite, com 20%.
Ônibus, terminais e outros espaços de mobilidade urbana são alguns dos locais em que a importunação sexual pode ocorrer. Em outubro deste ano, 22 denúncias foram contabilizadas na ferramenta e cerca de 50% se referiram à encoxar/apalpar.
Diferença entre importunação sexual e assédio
A importunação sexual foi inserida no Código Penal Brasileiro em 2018 e é diferente do crime de assédio. De acordo com Ana Paula Rocha, advogada e integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB Ceará, a importunação consiste na prática de atos libidinosos que visam à satisfação sexual do ofensor.
No assédio, há uma relação de hierarquia entre o agressor e a vítima e a obtenção de um favorecimento sexual.
“A importunação sexual envolve um constrangimento que tem uma conotação sexual, a prática de um ato libidinoso que tem o objetivo de satisfazer um desejo. Existem alguns critérios para ser considerado assédio, por exemplo, a obtenção de um chamado favorecimento sexual. Ao contrário da importunação, o agressor se vale da posição de superior hierárquico em um emprego, em um cargo ou uma função para poder ameaçar a vítima”, explicou
Plataforma Nina 2.0: como denunciar
As denúncias são registradas de forma anônima e, para realizá-las, as pessoas podem se cadastrar na ferramenta pelo WhatsApp (85 9 3300 7001).
É recomendado que a vítima forneça o máximo de informações sobre o caso, detalhando o número do veículo, a linha, o horário, o local, referências sobre vestimentas e características para possibilitar a identificação do agressor. Também é possível anexar arquivos de mídia referentes à ocorrência.
Christina Brasil, titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHSD), ressalta a importância de que as pessoas tenham o número salvo no telefone para facilitar a realização da denúncia.
“A mulher pode salvar o número do telefone da Nina, o WhatsApp da Nina, como contato do telefone e já fazer o cadastro. No momento em que ela sofrer qualquer tipo de importunação, dentro do transporte público, no terminal, nos espaços de mobilidade urbana, ela pode acessar e já descrever a ocorrência”, afirmou.
Nina 2.0: a importância da denúncia
Apesar da importância da plataforma, algumas mulheres podem deixar de denunciar o crime. É o que destaca a passageira Luciene Vieira, de 33 anos, que diz nunca ter sido vítima de importunação no transporte público, mas que se sente invadida e insegura em ônibus lotados e que, algumas vezes, evita ficar perto de homens.
Para Lucilene, o medo pode fazer com que muitas pessoas não realizem a denúncia. Além disso, a vergonha é um fator que pode impedir a formalização da denúncia.
A passageira Flávia Gerônimo, de 43 anos, também explicou que há a possibilidade de a vítima “sair como louca” e ter a denúncia minimizada, inclusive por outros passageiros.
A advogada Ana Paula Rocha aponta que cada vítima tem uma reação diante desse tipo de crime, algumas ficam paralisadas e outras sentem medo de serem ameaçadas pelo agressor. Porém, ela aponta que iniciativas como a ferramenta Nina podem colaborar para que as denúncias sejam feitas de forma mais rápida.
“A questão do machismo ainda é algo muito arraigado na nossa sociedade, e muitas mulheres se sentem, de uma certa forma, julgadas com a situação. Elas têm vergonha, elas têm medo. Ela é a vítima e ainda tem que provar o crime. Por isso, a importância dessas políticas públicas no enfrentamento à violência contra a mulher, porque fortalecem e encorajam as vítimas desse tipo de violência a denunciarem.”
As denúncias podem ser feitas pela vítima ou por uma testemunha. Dos casos registrados na plataforma no último ano, 81% foram feitos pela vítima e 19% por testemunhas. A titular Christina Brasil destaca que esse apoio pode ajudar a vítima e colaborar no fornecimento de informações.
“É importante que as pessoas que estejam dentro do transporte público também possam praticar um ato de cidadania, um ato de cuidado com o ser humano que está ali naquele mesmo ambiente, e que também possam ajudar descrevendo e até denunciando. Mostrando que está ali, principalmente as mulheres pela questão da sororidade também”, pontua.
Boletim de Ocorrência
Além do registro da denúncia na plataforma, a formalização do Boletim de Ocorrência é um passo fundamental no processo e na aplicação da Lei de Importunação Sexual, que está em vigor desde 2018.
De acordo com a lei, a pena pode ser de um a cinco anos de reclusão se a conduta não constituir crime mais grave.
“[O Boletim de Ocorrência] é exatamente a ligação entre a tecnologia, que é a ferramenta Nina, e as forças de segurança. A delegacia vai solicitar as imagens dentro do ônibus ou no terminal para que se possa iniciar o processo de investigação”, afirma Christina Brasil, titular da SDHSD.
A partir da formalização do B.O, as forças de segurança podem atuar na investigação e solicitar imagens das câmeras de segurança do coletivo, por exemplo.
De acordo com a Etufor, as imagens podem ser solicitadas pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), que é a especializada responsável pela investigação de crimes de importunação sexual. A Delegacia também consegue visualizar as ocorrências computadas na ferramenta.
Segundo a Empresa, desde o lançamento da Nina até essa segunda-feira, 13, foram solicitadas 18 imagens para apuração de crimes de importunação sexual no transporte público de Fortaleza.
A advogada Ana Paula Rocha aponta que, além de possibilitar a identificação do autor, a formalização da denúncia é importante para que informações sobre esse tipo de crime na Capital fiquem registrados.
“É importante até para que tenha dados de onde ocorrem os índices e para que se possa resguardar a integridade dessa mulher. Quanto mais as vítimas passam por esse tipo de violência e a informação não é levada, o agressor se sente impune e, consequentemente, à vontade para cometer outros crimes com outras vítimas”, finaliza.
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